30 agosto 2008

Socialismo 2008 - V


Nos últimos tempos têm-se multiplicado os eventos de sucesso. Enchentes em concertos, exposições noite dentro, records de público que caem uns após os outros. Como se de um concurso se tratasse.

E quando olhamos os números de sucesso podemos ver 100.000, 200.000 pessoas - 1 ou 2% dos habitantes de Portugal. Não é pouco? E será que cada evento teve os seus 1% ou há 1% que vai a tudo? Será que vieram pessoas doutros países?

Os eventos de sucesso não deixam de o ser por não poderem receber toda a população. São sucessos, pois claro. Mas o que é preciso compreender é que a vida cultural do país não se faz de eventos. Constrói-se quotidianamente.

Voltando ao início, 2006 e 2007 também tiveram eventos de sucesso. E mais de 75% dos portugueses não tinha assistido a qualquer espectáculo ou visto qualquer exposição. Quando é que os números e estudos começam a ter efeitos práticos?

Socialismo 2008 - IV

Pensemos num casal com dois filhos menores em que os dois trabalham e ganham, cada um, um salário 840 euros mensais. São uma família normal, com salário médio, que paga impostos, casa, carro, seguros. E depois de pagarem as contas todas ficam com 600 euros para roupa, comida, escola, desporto, arte. Se forem os 4 uma vez por mês ver um espectáculo gastam 50 euros em bilhetes; mais de 8% do orçamento disponível para todo o mês. Se os filhos frequentarem aulas de uma qualquer disciplina artística (o que, regra geral, obriga a recorrer a instituições privadas), gastam em arte mais 100 euros por mês; quase 17% do orçamento disponível. É normal exigir a uma família com este tipo de rendimentos - o rendimento médio em Portugal - que, para ter direito a alguma participação na vida cultural do seu país, gaste um quarto do seu orçamento disponível?

É claro que este é um tema directamente relacionado com os paradigmas de educação artística e de financiamento das artes. Mas, seguindo o raciocínio dos gestos quotidianos e acreditando que não há já dúvidas sobre a importância do acesso à arte e da importância da participação na vida cultural (aqui a “Comunicação sobre uma agenda europeia para a cultura num mundo globalizado”), que mecanismos existem para facilitar o acesso à arte gratuito ou a preços reduzidos?

Os museus têm dias e/ou horários de acesso gratuito e muitas salas de espectáculo têm bilhetes mais baratos para grupos ou famílias. São programas tímidos demais, é certo. Mas, alguém sabe dizer exactamente quando e como é que isso funciona? Onde está anunciado?

Naturalmente, uma pessoa esforçada, que navegue pelos sites todos, leia todos os programas e vá às bilheteiras perguntar, acaba por descobrir. Mas será normal? Uma pessoa que trabalha oito horas por dia, cuida dos filhos, trata das inevitáveis tarefas da casa, deveria saber quando ir ver uma exposição ou um espectáculo, por um preço que possa pagar, sem ter de perder horas a procurar. Ou mesmo, saber que no dia tal tem acesso livre e por isso planear ir, nunca o fazer, e, finalmente, num mês que até correu bem, ir num dia normal e pagar o seu bilhete. Porque o desejo alimenta-se.

29 agosto 2008

Socialismo 2008 - III

Qual é a importância das instituições culturais no desenho das nossas cidades? Os equipamentos culturais são fáceis de encontrar? São bem servidos por transportes públicos? Qual é a sua visibilidade, e a da sua programação, na vida quotidiana?


A cultura, e as artes, têm vindo a ganhar espaço no discurso político (o que, não é demais lembrar, não tem tido qualquer correspondência na importância dada à cultura, e às artes, nas políticas e orçamentos). Não há eleição autárquica em que não se fale da importância da cultura, e das artes - mesmo que, como no caso bizarro do Porto, seja para hostilizar as instituições culturais existentes - e, periodicamente, são divulgam estudos e relatórios, europeus e nacionais, sobre a importância da cultura na economia e desenvolvimento das cidades (aqui e aqui estão exemplos recentes). Tudo isto poder-nos-ia levar a acreditar que os equipamentos culturais assumem um papel central na vida das cidades. Mas não é assim.

Inexplicavelmente, na grande maioria das cidades, encontrar um teatro municipal é tarefa árdua. Nas circulares e vias rápidas que cercam as nossas cidades é usual encontrar placas com a indicação "centro comercial", mas "centro cultural" nem por isso. E uma vez encontrado o teatro também não é certo que se perceba a sua programação; nem sempre há informação na fachada, nem sempre está aberto, nem sempre se percebe muito bem onde é a porta...

Também inexplicavelmente encontramos nas nossas caixas de correio informação sobre todas as promoções das superfícies comerciais mas nenhuma sobre a programação dos eventos culturais. Poder-se-á dizer que isso acontece porque as superfícies comerciais têm uma capacidade de investimento em publicidade que os equipamentos - ou/e as cidades - não têm, mas dificilmente se pode aceitar, acreditando nos discursos e nos estudos, que este seja um problema inultrapassável. O que dizer , por exemplo, das autarquias que encontram recursos para distribuir gratuitamente revistas luxuosas que tudo dizem sobre as iniciativas do sr. presidente e nada sobre a programação dos equipamentos culturais?

As redes de transportes públicos também não ajudam; são normalmente planeadas numa lógica pendular casa/trabalho que exclui a fruição artística. E por isso não são raros os casos em que uma sala de espectáculos não é servida por nenhum transporte público à hora em que os espectáculos terminam. E por isso é raro encontrar na rede de transportes públicos indicações e ligações a equipamentos culturais. Tanto em Lisboa como no Porto há estações de metro ligadas directamente a centros comerciais mas quem está na estação dos Aliados no Porto não tem qualquer indicação que o teatro Rivoli - que já foi municipal e espere-se volte a ser - é logo ali ao lado.

É essencial pôr a vida cultural da cidade no quotidiano dos seus habitantes para que esta seja viva e vivida. Antes de depositar o dinheiro no banco X vi o seu nome em todos os outdoors da paragem de autocarro e vi os seus produtos financeiros anunciados em todas as suas montras. Antes de entrar na sala de espectáculos também preciso de ver o seu nome todos os dias, de passar todos os dias pelas placas que me asseguram que o encontro facilmente, de ver a sua programação e pensar muitas vezes "gostava de ver aquilo". É preciso que faça parte da minha vida mesmo antes de lá entrar. As necessidades, como todos sabemos, criam-se.

28 agosto 2008

Socialismo 2008 - II


A realidade não é uniforme e as generalizações não são aconselháveis. Ainda assim, arrisco:

1. De uma maneira geral a programação cultural é muito compartimentada. Criação contemporânea e património, erudito e popular, amador e profissional raramente se cruzam num mesmo palco, num mesmo espaço. Impera a ideia de público-alvo sem mobilidade. E a ideia de identidade do espaço ou da programação como um bem em si mesmo e que se define pelo monocromatismo. Espartilhados os espaços servem grupos muito específicos e poucas são as pessoas que os sentem como seus - condição primeira para os quererem ocupar como público.
Acredito sinceramente que as experiências bem sucedidas de criação e formação de público local (os habitantes da localidade onde está o equipamento têm de ser o primeiro público-alvo da sua programação) se devem a uma oferta muito diversificada que dá a todos razões para se sentirem donos do espaço: porque foi lá que se viu o espectáculo sobre a sua rua e aquele do actor conhecido, porque no mesmo mês se pode ver dança contemporânea e assistir à comemoração do centenário da banda filarmónica da terra, porque na sala ao lado da exposição com o quadro da prima estava a acontecer um concerto de música electrónica,...

2. A fruição da arte pressupõe a partilha de determinados códigos. Códigos culturais, uns mais universais do que outros, e que se podem aprender. Quantos mais códigos aprendemos, maior é a diversidade artística de que podemos usufruir. Mas para aprender um código é preciso algum ponto de apoio. Pessoas com origens culturais diversas precisam de pontos de apoio diversos.
O monocromatismo das programações não permite a partilha de códigos. E assim, independentemente do universalismo da criação, temos espectáculos, exposições, instalações, ou o que for, só para crianças, só para adultos, só para adolescentes, só para idosos, só para nascidos num canto da Europa, só para nascidos num outro canto, só para os que têm ligações a um pedaço de um outro continente, só para quem tem suspensórios às riscas, só para quem usa chapéu com abas...

3. A programação cultural não é criação artística. A programação é uma ponte entre a criação e o público. É, assim, um serviço público. E deste serviço público se espera que proporcione às pessoas que serve o contacto com a criação artística do seu tempo e do que a precedeu e com a criação artística local e do mundo na sua diversidade (o local, tal com o o mundo, é diverso). E que promova os mecanismos necessários para que o público que serve tenha as ferramentas - os códigos - para usufruir da oferta. Este é um serviço que ao cumprir-se serve o interesse público de construir a cada dia a identidade cultural local. É a partir do local que se constrói o global (pelo menos o global que tem que ver com a vida das pessoas - que é diverso e gosta de o ser).
Infelizmente muitas vezes confunde-se o serviço público de programar com lógicas internas de sobrevivência de instituições ou competição de visibilidade entre equipamentos ou cidades. E depois acontecem coisas terríveis: serviços educativos que são meros angariadores de público escolar, equipamentos municipais que os munícipes não conhecem, programadores que desconhecem o que os rodeia e inventam ciclos temáticos e outros que tais que impõem, com a chantagem dos meios, aos criadores, desvirtualizando assim completamente o serviço público que é suposto servirem.

(Sobre os programadores, a adaptação às artes do palco da figura do comissário das artes visuais, devo dizer que não estou convencida da sua utilidade. Acredito que a programação artística deve ser feita por artistas. Pelo menos nas artes do palco, o trabalho pluridisciplinar e em equipa dá aos artistas armas mais do que suficientes para cumprir a tarefa. É claro que nem todos os artistas serão capazes de programar. Como nem todos os professores serão capazes de gerir escolas. Ou médicos os hospitais. Mas, podendo e devendo trabalhar em equipas com valências várias, são estes, cada um na sua área, os melhores garantes de que o secundário não subalterniza o essencial.)

Sobre o Estudo Macroeconómico “Desenvolvimento de um Cluster de Indústrias Criativas da Região do Norte”

27 agosto 2008

Socialismo 2008

Há cerca de um ano – em Setembro de 2007 – foi divulgado pela Comissão Europeia um Eurobarómetro especial sobre os valores culturais da Europa. Esse estudo revelou dados preocupantes sobre Portugal. Mas teve algum efeito?

Mais de metade dos Europeus considera a Europa como “o continente da cultura”. Os portugueses são dos mais entusiastas desta definição da Europa: não só 82% dos inquiridos consideram a Europa como o continente da cultura como 80% consideram que a sua grande riqueza se deve à sua diversidade. E 74% consideram a cultura importante para a sua vida.

A cultura é algo de muito vasto, mas parece indubitavelmente ligada à arte: 25% quando pensa em cultura pensa em artes performativas e visuais, literatura, educação e ciência (respostas como civilização, modo de vida, tempos livres, crenças ou valores foram dadas por menos de 15% dos inquiridos portugueses).

Paradoxalmente, nos 12 meses que antecederam o inquérito, 90% não tinha visto ópera, ballet ou dança, 81% não tinha ido uma única vez ao teatro, 76% não assistira a qualquer concerto, ou visitara qualquer museu ou galeria, 75% não tinha entrado numa biblioteca. E 73% dos inquiridos portugueses declararam ainda não ter participado em qualquer tipo de organização, associação ou grupo informal em que pudesse tocar um instrumento, cantar, dançar, escrever, pintar, esculpir, fotografar, filmar, ou mesmo fazer qualquer tipo de artesanato, decoração, jardinagem, etc...

Quando inquiridos sobre os obstáculos no acesso e participação em actividades culturais, as respostas dividem-se: falta de interesse, falta de tempo, falta de dinheiro, falta de informação. Que faltas são estas? Que perguntas temos de fazer à nossa “vida cultural”?

A programação cultural tem ou não interesse para as pessoas que é suposto servir? Consegue atraí-las de alguma forma? É tão diversificada, cultural, social e geracionalmente, como a população portuguesa? Existe formação de públicos? O que é um serviço educativo? Para que servem os programadores?

Qual é a importância das instituições culturais no desenho das nossas cidades? Os equipamentos culturais são fáceis de encontrar? São bem servidos por transportes públicos? Qual é a sua visibilidade, e a da sua programação, na vida quotidiana?

E quem paga a arte? Pode ser sem custos para o utilizador? Ou só para alguns? Ou só nalguns dias? Quão fácil é saber em que dia se pode ir ao museu mais perto de casa sem pagar? Ou se uma família pode ir ao teatro a preços reduzidos? Quanto tempo é preciso gastar para se perceber como aceder a arte sem gastar muito?

E quando um evento cultural bate records de público? Ficamos tão contentes que o quotidiano deixa de ser um problema?

No dia 31 de Agosto às 10h30 vou conversar sobre "Construir o impossível: identidade, arte e quotidiano".

24 agosto 2008

o público errou

Ontem um dos artigos do P2 chama-se: "Do outro lado da cidade" e é assinado pela Ana Cristina Pereira. Na introdução diz simplesmente: "Moram num sítio onde ninguém vai a menos que precise muito. Moram em Campanhã, a mais estigmatizada freguesia do Porto. O fotojornalista Paulo Pimenta propôs-lhes um exercício: fotografá-los onde moravam, onde moram , onde gostariam de ser vistos." E depois tem o perfil de duas famílias, ilustrado pelos seus retratos. Assim, sem mais.

Sem dizer que as fotografias de que fala, e que mostra, são muito mais do que a ilustração de um artigo. São parte de um projecto artístico muito mais vasto, da autoria do fotógrafo Paulo Pimenta e da companhia de teatro Visões Úteis (que não é sequer referida). Aquelas 6 imagens fazem parte de uma exposição composta por 21 imagens criadas ao longo de um projecto que nos acompanha há quase dois anos. Aquele conceito de traçar uma geografia do Porto através de retratos de famílias que habitam zonas marginalizadas da cidade, nasceu do discurso do Visões Úteis sobre a cidade e da cumplicidade com o Paulo Pimenta.

Estávamos a preparar O Resto do Mundo - teatro num táxi pela cidade e desafiámos o fotógrafo Paulo Pimenta e o realizador Pedro Maia a acompanharem-nos no processo e a desenvolverem um trabalho próprio sobre a zona oriental da cidade. O Pedro respondeu ao desafio com A Caminho do Resto do Mundo e o Paulo com Vou ao Porto. Com o Paulo fomos a todo o Porto e ao longo de um ano trabalhámos com oito famílias que habitam a zona oriental, com os assistentes sociais que nos ajudaram a dar corpo ao projecto, com os vizinhos que nos aturaram, com as famílias alargadas que nos receberam. Para além do Paulo Pimenta, autor do projecto, e de mim, que com ele o coordenei, estiveram envolvidos a Ana Vitorino, o Carlos Costa, o Pedro Carreira e o Nuno Casimiro.

Já o disse antes: este projecto foi uma das viagens criativas que mais me marcou nos últimos tempos. Vê-lo reduzido a mera ilustração de artigo foi um soco no estômago. Tenho a certeza de que ao Paulo ainda custou mais. E, autorias e emoções à parte, a verdade é que o artigo, assim, simplesmente não tem sentido. São dois perfis sem qualquer contextualização ilustrados por retratos (!) do fotojornalista Paulo Pimenta. Sim, o mesmo que nos mostra sempre o movimento da história e do olhar. Até as imagens (belíssimas, fortes), confundidas com fotojornalismo, uma vez que se lhes retirou o contexto - o projecto artístico que as sustenta -, aparecem quase como um erro de linguagem. Uma crueldade.

os muros matam as cidades

Era mais ou menos isto que dizíamos na Orla do Bosque. E acabo de ler no Público "Viver num condomínio privado muda os comportamentos políticos?"

07 agosto 2008

O direito à criação

A propósito deste artigo do Público, que cita o João Teixeira Lopes, atrevo-me a acrescentar que um dos grandes problemas do Porto neste momento é o não reconhecimento por parte do poder político e económico do direito à criação.
A quase inexistente "ligação entre esta cultura emergente e a cultura institucional" tem como consequência a falta de meios de produção, e de sobrevivência, para quem quer criar hoje no Porto. A cultura institucional ocupa-se de mostrar no Porto o que se fez ou o que se faz no resto do mundo - o que é bom mas insuficiente. No Porto o direito à fruição está garantido. O direito à criação não. Cada vez menos.
Uma cidade que não (se) cria, morre. Por muito in que possa parecer de vez em quando.

05 agosto 2008

A Câmara do Porto e as artes do espectáculo

Há coisas que não fazem férias. Como os ódios de estimação. Via Baixa do Porto li o programa de cultura da Câmara Municipal do Porto para Agosto. Não há surpresas: salas de espectáculo e criadores da cidade não entram.