12 abril 2011

Cultura e emancipação

O controlo dos meios de comunicação social e a mercantilização da cultura asseguram a hegemonia cultural da burguesia. A inevitabilidade do liberalismo económico, sempre embrulhada na ridicularização da luta e da solidariedade, no mito da meritocracia e no elogio bacoco da caridade, aparece como pensamento único imposto pelos grandes grupos económicos que controlam a televisão, a rádio e a imprensa, mas também o cinema e a edição.

O pensamento dominante tem, para além da defesa da inevitabilidade do liberalismo económico, dois outros alvos: a opressão das mulheres e o assalto à diversidade cultural. Em estudos internacionais sobre género e indústria do entretenimento comprovou-se que há menos de 30% de protagonistas femininos, que nos produtos destinados à infância o desequilíbrio é ainda maior, sendo o estereótipo da mulher/menina que tem como objectivo encontrar o seu amor é omnipresente, e, em Portugal, os dados da ERC assinalam que nos programas de informação há menos de 15% de protagonistas femininos. Quanto à diversidade cultural, o que está em causa é tanto o conhecimento da diversidade como a capacidade de criação local; o imperialismo cultural é tão eficaz na uniformização de consumos como no atear da intolerância.

Em Portugal tem crescido a quantidade de oferta de bens culturais assente na produção massificada das grandes multinacionais da indústria cultural e o Estado continua a demitir-se da necessidade de implementar os serviços públicos que garantam a pluralidade no acesso à informação e à cultura e tem activamente colocado o património cultural refém dos interesses do turismo e da especulação imobiliária. E o diálogo de culturas é simplesmente ignorado: do nosso quotidiano está ausente a diversidade cultural do nosso território e da população que o habita, mas também a dos nossos vizinhos galegos, europeus, mediterrânicos.

A crise tem servido como pretexto para o aprofundamento deste processo, com a fragilização das estruturas públicas de criação e difusão artística, as remodelações nas tutelas das bibliotecas e do património, a caducidade de dezenas de processos de classificação de imóveis e a proliferação de fundações em que o interesse público se subordina aos interesses privados. As recentes alterações à Lei da Rádio e à Lei da Televisão contribuem para a diminuição da diversidade da oferta ao aprofundarem a concentração e fragilizarem o serviço público, com a desculpa de que no actual contexto só as mega-empresas podem sobreviver e que o serviço público é um “concorrente desleal”. Foi também o mercado fragilizado que serviu como desculpa para que em Portugal se procedesse à pior e mais pobre implementação da televisão digital terrestre (TDT) da Europa; assistimos nos últimos anos a um processo de chantagem sobre toda a população que tornou a compra de canais cabo uma necessidade básica da população, enquanto no resto da Europa a TDT era implementada com multiplicação dos canais de acesso gratuito.

A inexistência de redes de serviço público de cultura, e a consequente ausência das instituições culturais e das suas agendas do quotidiano das populações, aprofunda a dependência da televisão tornando os hábitos de fruição cultural em Portugal dos mais pobres da Europa. E a evolução não tem sido positiva: o movimento associativo popular tem perdido força ao longo dos últimos anos, mais recentemente as estruturas independentes profissionais de criação e produção artística e cultural, que estavam a crescer, tiveram de diminuir a actividade como consequência dos cortes orçamentais, o Governo anunciou que no último ano os monumentos e museus perderam quase um milhão de euros de receitas com a quebra de visitantes e, dados do INE referentes a 2009, os teatros e as salas de espectáculos do país, em média, só abrem as portas 6 dias por mês.

Um governo de esquerda tem de defender redes de serviços públicos que garantam o acesso à cultura na sua multiplicidade em todo o território, através de bibliotecas, museus, teatros e centros culturais públicos e de mecanismos diversificados e transparentes de apoio a estruturas de criação e difusão cultural locais. Não poderá descurar a importância da generalização do acesso à banda larga e a imposição de regras de transparência e de não concentração da comunicação social enquanto mecanismos essenciais no garante da diversidade e pluralidade da informação e da difusão cultural. E terá de articular objectivos de política cultural e educativa e de garantir a presença das artes na Escola Pública.

É imperativo defender o direito da população ao usufruto do seu património cultural material e imaterial e a criação de instrumentos de mediação cultural que efectivem o acesso à cultura. O acesso à cultura – tanto à fruição como à promoção – tem de sair do território da chantagem e do favor de governantes do momento e constituir-se como verdadeiro direito. Não há democracia sem democracia cultural, não há emancipação sem direitos culturais.


Contributo para o deBatEs / VII Convenção Nacional do Bloco de Esquerda

Da democracia

Nas últimas semanas têm-se multiplicado os apelos a uma suspensão da democracia. Do manifesto dos 47 ilustres aos consensos podres de debate televisivo o discurso repete-se: este é o momento da unanimidade. Nada de divergências, dizem-nos, temos todos de nos unir no caminho único e inevitável da recessão, do FMI. Quem decidiu a inevitabilidade, não nos dizem. Mas nós sabemos.

Um grupo de banqueiros poderoso reuniu-se e disse que precisava do FMI. Foi a sua forma de manifestação e greve; não vieram ao espaço público, que gostam mais do recato do gabinete, e não houve guerra de números quanto à adesão, que os milhões que dominam ninguém contesta. Não se preocuparam muito com a coerência do discurso, com o longo prazo ou com o país. E ninguém lhes fez perguntas incómodas, porque isso seria desagradável.

Dizem-nos que sem banca não sobrevivemos. Será verdade. E sem vida, sobrevivemos? Pedem-nos que cortemos nas vidas porque os mercados o exigem. E que é irresponsável não responder aos mercados. E cortar nas vidas, é responsável? Que sentido tem tudo isto? Afinal, como chegámos até aqui? E como vamos sair daqui? Não será certamente com mais do mesmo.

Não há respostas salvadoras nem governantes providenciais. Muito menos o FMI o será. Mas temos o mais poderoso instrumento da resposta: a democracia. A democracia que se faz no activismo, na rua, no voto, no debate. Se aceitamos que nos momentos difíceis o unanimismo deve substituir o confronto das alternativas, estamos a abdicar do único instrumento que nos pode valer: o poder do povo. Abdicar da democracia foi sempre a pior das decisões nos piores dos momentos. As vidas são nossas, a decisão é nossa.

publicado no esquerda.net

06 abril 2011

Novo regime laboral dos trabalhadores do espectáculo e do audiovisual

Na anterior legislatura o Partido Socialista, com maioria absoluta, impôs na Assembleia da República a criação de um regime laboral para os profissionais do espectáculo e do audiovisual que, de tão desadequado à realidade, nunca chegou de facto a ser aplicado. A Lei 4/2008 não só não resolvia o grave problema de falsos recibos verdes que assola o sector do espectáculo e do audiovisual como criava problemas novos, como o do ataque aos direitos de autor.

Nesta legislatura, e com o Partido Socialista agora numa situação de maioria relativa, foi possível trabalhar sobre várias propostas alternativas – o diploma que agora aprovamos nasce de diplomas de 3 bancadas parlamentares (Bloco de Esquerda, PCP e PS) aprovados na generalidade e dos contributos de todas as bancadas parlamentares em sede de especialidade – e há uma aproximação efectiva às necessidades e revindicações do sector. Não é esta a legislação definitiva, que responda a todas as dificuldades e especificidades do sector, mas é certamente mais adequada, mais equilibrada, mais responsável. Dá instrumentos para começar a resolver alguns dos problemas. É por isso um passo importante e que assinalamos.

E esta é a razão para acompanharmos um diploma em que, não nos revendo em muitas das opções que são herdeiras da Lei 4/2008 e que cuja permanência o PS impôs com o apoio de PSD e CDS, reconhecemos avanços muito significativos no combate à violência que é a precariedade do trabalho a falso recibo verde.

O Bloco de Esquerda empenhou-se neste combate e várias das suas propostas vingaram. Temos agora um regime laboral que se aplica tanto a profissões artísticas como a técnicas, técnico-artísticas e de mediação. Nenhum profissional em nenhuma equipa de espectáculo ou audiovisual se verá excluído da possibilidade de assinar contrato. Mais, com esta nova lei os trabalhadores e as trabalhadoras do espectáculo e audiovisual podem assinar contratos com mais do que uma entidade sem as limitações impostas pelo Código do Trabalho; não só todas e todas têm agora acesso a contrato de trabalho como o têm em todas as suas múltiplas actividades. Sabemos bem que esta é uma área em que um actor faz dobragens de manhã e está em cena à noite, em que um técnico está num estúdio de manhã e no palco de um festival à tarde, em que um cantor dá aulas de voz aos intérpretes de um espectáculo à tarde e actua à noite… Podem todos e todas agora exigir o contrato de trabalho a que têm direito e lhes dá direitos. Com o contrato de trabalho vem a protecção na doença, nos acidentes de trabalho, a possibilidade de aceder ao subsídio de desemprego. Este é um passo significativo.

Este acesso aos contratos de trabalho está fortalecido por outras duas alterações importantes e que foram reivindicações de todos os sindicatos, associações e demais entidades representativas do sector ouvidas ao longo deste processo. Uma das exigências foi a revogação do artigo 18º da Lei 4/2008 que atacava os direitos de autor. E esse artigo foi revogado. Os direitos de autor são regulados em legislação própria e a existência de normas conflituantes entre o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos e o regime laboral dos trabalhadores do espectáculo e audiovisual atacava direitos e criava incerteza. Agora, e com esta revogação, proposta pelo Bloco de Esquerda e que apenas teve a oposição do PS, conseguiu-se não só a protecção dos direitos dos autores e dos artistas, mas também maior clareza jurídica.

Outra das reivindicações do sector que encontra acolhimento neste diploma é o reforço da presunção de contrato de trabalho. O artigo 6º da Lei 4/2008 fazia depender a presunção da dependência económica do empregador, o que, num sector em que o pluriemprego é generalizado e muitos trabalhadores estão na dependência económica de diversos empregadores, deixava de fora muitas situações de contrato de trabalho. Com a revogação deste artigo, a presunção aplica-se nos termos estabelecidos no Código do Trabalho; ou seja, a dependência económica deixa de ser critério e aplica-se o artigo 12º do Código de Trabalho. Sempre que o local de realização da actividade for determinado pelo empregador e exista horário de trabalho presume-se a existência de contrato de trabalho. É outro avanço significativo.

Sabemos no entanto que o reforço da presunção de contrato de trabalho não resolve por si só todos os problemas. Neste sector, como noutros, o combate aos recibos verdes exige uma ACT mais actuante e um Estado que assuma as suas responsabilidades e não abandone os trabalhadores à sua sorte. E sobre estas matérias o Bloco de Esquerda tem apresentado projectos de lei com soluções concretas e continuará a fazê-lo.

O Partido Socialista apresentou a este respeito uma proposta que foi chumbada por toda a oposição e que merece alguma reflexão. Pretendia o PS que fosse vedado o acesso a financiamentos directos do Estado para o sector do espectáculo e do audiovisual a quem não celebrasse contratos com 85% dos trabalhadores. Esta proposta foi criticada em uníssono por todos os sindicatos e associações representativas do sector por, embora se reconhecessem boas intenções na sua formulação, estar mal feita. A proposta foi recusada por 3 ordens de razão: 1. Criava uma espécie de “zona franca” para a contratação a falsos recibos verdes nas actividades não financiadas directamente pelo Estado, e nomeadamente no sector da televisão, e em 15% dos trabalhadores dos projectos financiados; 2. Misturava legislação sobre regime laboral com legislação sobre financiamentos do Estado, criando uma baralhada jurídica; 3. Retirava a possibilidade de financiamento directo do Estado a projectos pequenos, levados a cabo por equipas reduzidas, bastando para tal que, numa equipa de 4 pessoas, um dos intervenientes – por exemplo o autor – fosse um verdadeiro recibo verde. Consideramos no entanto que será pertinente, em sede da legislação sobre financiamentos directos do Estado, introduzir normas que obriguem os beneficiários a comprovar a adequação dos vínculos laborais que estabelecem com as equipas, tal hoje são já obrigados a comprovar a regularização da sua situação junto da segurança social e do fisco. E o Bloco de Esquerda assume o compromisso de apresentar propostas neste sentido.

Lamentamos que muitas alterações pelas quais nos batemos não tenham sido aceites: não acompanhamos a manutenção de diversas normas da Lei 4/2008, como os contratos intermitentes, ou o regime de reconversão profissional, que o PS, com o apoio de PSD e CDS, não aceitou alterar. Consideramos muito insuficientes as alterações ao artigo 7º, sobre contratos a termo, embora reconheçamos que se avançou na protecção do direito ao gozo das férias, já que a redução de 8 para 6 anos como limite dos contratos a termo é, no mínimo, um passo muito tímido. A especificidade do sector pode exigir uma maior flexibilidade para a contratação a termo, mas não justifica que os contratos a prazo possam ter 6 anos. E é com muita amargura que vemos duas oportunidades perdidas. Perdidas, desde logo, porque o Partido Socialista não cumpriu as promessas feitas.

A primeira promessa quebrada foi a de um regime de acesso às prestações de desemprego que respondesse às necessidades dos verdadeiros intermitentes do espectáculo e do audiovisual. O regime que PS propôs não assegura o acesso ao subsídio de desemprego entre projectos, entre espectáculos, entre filmes. Mais, o Partido Socialista, que afirmou desde início que estaria disponível para debater alternativas e encontrar novas soluções, chumbou todas as alterações propostas, incluindo as que saíram directamente das audições aos sindicatos e demais entidades representativas do sector e a que o Bloco de Esquerda deu corpo, sob a forma de propostas de alteração. Todas chumbadas. Até ao fim insistiu na proposta inicial, de forma completamente inflexível e contrariando tudo o que foram as suas promessas ao sector. O combate pelo direito de acesso ao subsídio de desemprego, com regime que proteja tanto os trabalhadores com contrato permanente como os intermitentes do espectáculo e do audiovisual é um compromisso do Bloco de Esquerda. E apresentaremos iniciativas legislativas com soluções concretas. Não baixamos os braços.

A outra promessa quebrada foi a de um estatuto para os bailarinos de bailado clássico e contemporâneo, nomeadamente, dos bailarinos da Companhia Nacional de Bailado. O diploma que agora aprovamos não dá resposta a estes profissionais. E é vergonhoso que se continue a sacrificar pela incompetência e irresponsabilidade os bailarinos e bailarinas de bailado clássico e contemporâneo. Lembramos que o Bloco de Esquerda apresentou um projecto de lei, acompanhando os projectos relativos ao regime laboral e segurança social para os trabalhadores do espectáculo e do audiovisual, para responder às necessidades inerentes a esta profissão de desgaste rápido. O Partido Socialista, num primeiro momento, pediu que se baixasse o diploma à comissão sem votação porque o Governo apresentaria uma proposta própria e as duas propostas – do Bloco de Esquerda e do Governo – poderiam ser debatidas em conjunto. O Governo não cumpriu a promessa e o Partido Socialista também não. Acabou por chumbar a proposta do Bloco de Esquerda, o único partido que apresentou alternativa e proposta, com a conivência das abstenções de PSD e CDS. A promessa de proposta foi repetida, mas nada foi feito. Registamos que nesta legislatura o Governo não apresentou nenhuma das leis que prometeu para o sector cultural. Nada foi apresentado: lei das bibliotecas, do cinema, da cópia privada. Tudo na gaveta. Mas a maior vergonha deste Governo e do Partido Socialista é certamente ter negado aos bailarinos, e nomeadamente aos bailarinos da Companhia Nacional de Bailado, direitos básicos no final da carreira. O Bloco de Esquerda não esquece e mantém o compromisso com os bailarinos.

Muito ficou por fazer. Este diploma representa um avanço, mas não a resposta. Votámos a favor do texto final, porque reconhecemos neste processo legislativo as conquistas do sector, a que o Bloco de Esquerda deu voz e pelas quais se bateu. As alterações agora conseguidas melhoram a situação laboral dos profissionais do espectáculo e do audiovisual. Mas não resolvem todos os problemas. Este é apenas mais um passo sobre o qual continuaremos a fazer propostas que respondam às necessidades e aos direitos dos trabalhadores do espectáculo e do audiovisual.