26 fevereiro 2008

estatuto dos profissionais do espectáculo - ponto de situação

Em Maio de 2007 a Assembleia da República recomendou ao Governo que:
"1— Até ao fim da legislatura, crie os regimes especiais necessários a promover um enquadramento laboral, fiscal e de protecção social que permita um tratamento mais justo e equitativo aos trabalhadores das artes do espectáculo.
2— Para este efeito, promova a realização de um estudo que faça o diagnóstico relativo à situação jurídica dos trabalhadores das artes do espectáculo, designadamente nos domínios da segurança social, da legislação laboral, dos acidentes de trabalho e doenças profissionais, da formação profissional e do enquadramento fiscal destas actividades.
3— Discuta esse diagnóstico com todos os representantes do sector, de modo que as suas contribuições e sugestões possam ser incluídas nas conclusões do diagnóstico.”

Este mês, no dia 7 de Fevereiro, foi publicado no Diário da República o novo regime de contratação de profissionais de espectáculos, que, conforme o seu artigo 1º, se aplica a
"1 - A presente lei regula o contrato de trabalho especial entre uma pessoa que desenvolve uma actividade artística destinada a espectáculos públicos e a entidade produtora ou organizadora desses espectáculos.
2 - Para efeitos da presente lei, são consideradas artísticas as actividades de actor, artista circense ou de variedades, bailarino, cantor, coreógrafo, encenador, figurante, maestro, músico ou toureiro, entre outras, desde que exercidas com carácter regular.
3 - Para efeitos da presente lei, são considerados espectáculos públicos os que se realizam perante o público e ainda os que se destinam a gravação de qualquer tipo para posterior difusão pública, nomeadamente em teatro, cinema, radiodifusão, televisão, praças de touros, circos ou noutro local destinado a actuações ou exibições artísticas.”

Estes passos para um estatuto dos profissionais do espectáculo são históricos. Depois de sucessivas legislaturas em que o estatuto nunca passou de umas linhas ignoradas mas sempre presentes nos programas eleitorais e até de governo, finalmente algo está a ser feito. Resta saber em que sentido.

A recomendação da Assembleia da República é muito importante: refere a necessidade de um regime laboral, fiscal e de protecção social dos trabalhadores das artes do espectáculo, da necessidade de diagnóstico e de ouvir o sector. O diploma agora aprovado está muito longe de responder à recomendação: só se aplica a uma pequena parte dos trabalhadores do espectáculo e deixa a protecção social para outra altura (“Artigo 21.º - Segurança Social - O regime de segurança social aplicável aos trabalhadores artistas de espectáculos públicos é estabelecido por diploma próprio.”).

A legislação agora publicada é em si mesma prova de que não foi feito o diagnóstico do sector nem ouvidos os agentes. Tivemos todos - Plateia, Rede, Plataforma dos Intermitentes, Sindicatos - diversas reuniões de trabalho com governo e deputados. Mas nada do que foi discutido nessas reuniões passou para quem redigiu a lei. Porquê separar as profissões ditas criativas das profissões ditas técnicas? Que sentido tem um estatuto para metade das equipas de trabalho? Não estarão todos os profissionais do espectáculo sujeitos ao mesmo trabalho intensivo, à mesma intermitência, à mesma diversidade de empregadores (sucessivamente ou mesmo simultaneamente) às mesmas dificuldades de conciliação da vida profissional e familiar, etc.? Em que é diferente a vida de um técnico de som e de um coreógrafo? É certo que existirão problemas distintos no que diz respeito a direitos de autor ou propriedade intelectual, como também é certo que uma actriz ou bailarina grávidas precisam de um protecção na gravidez diferente de uma produtora, mas a situação em que exercem a profissão é genericamente a mesma. Assim como não se percebem diferenças significativas entre os profissionais do espectáculo e os do audiovisual. O que distingue o enquadramento do exercício da profissão de um técnico de luz de teatro ou de cinema? Ou de um actor quando faz teatro ou quando faz televisão?

Também não se percebe para que serve uma regulamentação de contratos ditos intermitentes sem respectivo estatuto de intermitente para efeitos de segurança social. O trabalho na área do espectáculo e do audiovisual é, em muitas situações, necessariamente intermitente. Desenvolve-se por projectos com necessidades diferentes e com trabalhadores cujas capacidades profissionais se desenvolvem precisamente por integrarem projectos diversos. Aos períodos de trabalho intensivo sucedem-se muitas vezes períodos de inactividade: seja por lapsos entre um trabalho e o próximo, por necessidades de formação ou para reunir as condições para entrar num novo projecto. O regime contractual agora em vigor, para uma parte dos trabalhadores do espectáculo, prevê estes espaços de inactividade por parte do empregador, mas não do trabalhador. Agora um empregador pode fazer contratos a termo sucessivos, em vez de disfarçar o efectivo vínculo laboral com falsos recibos verdes, e pode até manter trabalhadores em períodos de inactividade pagando-lhes apenas parte do salário. Mas e ao trabalhador, o que acontece?

No caso de um trabalhador dependente apenas de uma entidade empregadora é mais ou menos claro. Nos períodos de inactividade ganha menos e, se não estiver em regime de exclusividade, pode tentar fazer mais alguma coisa, desde que não assuma nenhum compromisso que o impeça de voltar a trabalhar normalmente, para a entidade que o pôs em inactividade, com um pré-aviso de 30 dias. Mas estes casos são raros. Vamos pensar agora pensar num caso comum: um actor trabalha uns quatro meses numa peça de teatro com um contrato a termo. O contrato acaba e não tem outro durante uns dois meses. Que fazer? Para ter direito a subsídio de desemprego tem de trabalhar mais do que quatro meses (na falta de lei específica, aplica-se a geral). E mesmo que tivesse tido trabalho o tempo suficiente para ter subsídio de desemprego, se estiver colectado como trabalhador independente - para, por exemplo, passar recibos verdes por fazer umas dobragens (o que esta lei não prevê), perde o direito a subsídio de desemprego. Mesmo que nesses dois meses não faça nada.

Regulamentar a contratação sem nada dizer sobre a segurança social não chega para estruturar o sector. Muita da debilidade do meio deve-se à falta de protecção social dos trabalhadores. Cronicamente tem-se disfarçado a falta de meios para a criação artística com a desprotecção dos profissionais. E as grandes empresas (como produtoras de televisão), e o próprio Estado, têm aproveitado para seguir os modelos dos pequenos empreendedores e do auto-emprego (as micro companhias de teatro e dança, os projectos pontuais) debilitando ainda mais o tecido profissional. Um profissional não pode ser obrigado a fazer em nome do lucro de outros, os sacrifícios que entende fazer em nome de projectos em cuja gestão tem voz activa. Não há razão para nesta área os trabalhadores serem ainda mais desprotegidos do que em todas as outras.

A PLATEIA, A GDA e o CIJE apresentaram em Dezembro ao Secretário de Estado da Segurança Social uma proposta para regulamentar a segurança social para os profissionais do espectáculo e do audiovisual que tem em conta a legislação nacional nesta matéria, estudos de direito comparado e a experiência dos profissionais. Esta proposta prevê, por exemplo, um regime de contribuições e de protecção no desemprego pensado para a intermitência. É essencial estar atento para que este assunto não seja adiado indefinidamente.

Entretanto há uma nova lei em vigor. Uma lei que prevê contratos de trabalho para uma série de profissionais que até agora dependiam unicamente de recibos verdes. A lei é insuficiente. Mas tem de ser aplicada. A sua aplicação não é facultativa e os profissionais por ela abrangida devem fazer respeitar os seus direitos. Ter um contrato, mesmo sem legislação sobre segurança social, é uma protecção importante. Quando estava na direcção da PLATEIA ouvi muitos relatos de contratos orais nunca cumpridos. E em que os trabalhadores, disfarçados de trabalhadores independentes, não tinham qualquer forma de exigirem o que lhes era devido. Quem tem agora alguma protecção não pode dispensá-la.

escrito a posteriori com base na intervenção como oradora, em representação da PLATEIA, na sessão temática "Emprego, condições de trabalho e estatuto profissional dos profissionais das artes e da cultura" dos Encontros AlCultur em Guimarães, no dia 23 de Fevereiro.

25 fevereiro 2008

correu bem, não correu?

Estivemos este sábado em Guimarães com o espectáculo "Adúlteros Desorientados". Foi no café-concerto do Centro Cultural Vila Flor. A equipa técnica foi fantástica e criou as soluções ideais de rotação dos espectáculos pelo palco. O público era bastante e aderiu ao espectáculo. No final a produção do Vila Flor deu-nos os parabéns; o público do café-concerto ainda precisa de ser trabalhado - normalmente não faz silêncio durante os espectáculos. Connosco, com o Pedro, fez. Que bom!

Correu bem, não correu?
Não, não correu.

Porque nós não íamos fazer um espectáculo para o público do café-concerto. Nós íamos fazer um espectáculo para a Expocultura. E isso não correu nada bem.

A aposta era simples: nós oferecemos um espectáculo a um evento que nos oferece um público especializado, potenciando as possibilidades de circulação do nosso trabalho. Mas o público especializado não estava lá. O espectáculo teve até de ser adiado das 21h (o horário da expocultura) para as 21h30 (o horário normal para o público em geral).

E porque correu mal a Expocultura?
Porque em Portugal não há tradição deste tipo de coisas. Claro!
E porque os programadores estão habituados ao conforto dos menus e encomendas. Claro!
E porque os criadores também arriscam pouco nestas coisas. Claro!
Mas também porque a organização pensou mais na forma do que no conteúdo. E formalmente o relatório até não será mau de todo. No papel, claro. Só no papel.

Não basta dizer que se proporciona o encontro. É preciso criá-lo activamente. Porque não foram distribuídas fichas de contactos de criadores e programadores presentes na Expocultura ou nos encontros Alcultur? Porque não se teve uma política activa de levar os programadores a conhecer os trabalhos dos Showcases? Porque não se criaram os mecanismos para fazer chegar informação dos criadores aos programadores? (veja-se o exemplo galego descrito pelo João). Porque ficou a sensação de que quem arriscou com a organização foi mais um peso do que um parceiro?

Digo sempre, e repito, que lutar contra o estado de coisas é difícil e é tarefa colectiva. Fácil é dizer mal de quem tenta dar qualquer passo só porque não se chega à meta logo à primeira passada. Mas a boa vontade e solidariedade para com que arrisca primeiros passos - que justificou a nossa adesão ao evento - não pode impedir a crítica.

Uma apontamento final, que não tendo importância efectiva, é revelador: no fim do espectáculo a equipa do Centro Cultural Vila Flor agradeceu e deu os parabéns ao Visões Úteis. Da equipa da Cultideias, a organizadora do evento, nem uma palavra.

21 fevereiro 2008

Cidade de catálogo, ou as loucuras do poder e dos arquitectos

Se as pessoas fossem imagens de computador era perfeito. Passeariam incessantemente por entre praças sem relva e sem sombra e não sentiriam o frio do bancos de granito liso. Também não sentiriam falta do Bolhão. Até porque não comeriam verdes nem teriam cheiro.

18 fevereiro 2008

a cidade do inacreditável

Conseguem imaginar o Porto sem o Mercado do Bolhão?
Faz isto algum sentido?
É como mudar de nome de um dia para o outro porque o de família é difícil de soletrar.
Esta não é uma cidade. É um espaço irreal criado à medida dos pesadelos de um louco.
O Rivoli foi oferecido a um empresário, o pavilhão Rosa Mota segue o mesmo caminho. A praça de Lisboa é da Bragaparques. O Mercado do Bolhão é para ir abaixo. Mas pode fazer-se snowboard na rua 1º de Janeiro.
O resto do país encolhe os ombros. "Isso é lá com eles." Com os tripeiros do sotaque bronco. Como também é com eles. Os madeirenses com a sua língua incompreensível. Até que todo o país há de ser uma sucessão de ilhas de eles, com os seus sotaques estúpidos e as suas manias boçais. E quem puder vai viver para Bruxelas. Defender as identidades plurais do mundo globalizado.

A petição em defesa do Mercado do Bolhão está aqui.

13 fevereiro 2008

o roubo dos sete anões

Entraram os sete no prédio. Um prédio de sete andares.
O Atchim chegou ao 1º andar e entre dois espirros desmontou a fechadura. O Mestre dedicou-se ao 2º andar e serrou com perfeição uma das almofadas da porta. O Dunga fez dois buracos nas duas fechaduras do 3º andar. O Dengoso foi entrando no 4º andar como se nada fosse. O Zangado ficou com o 5º andar e partiu a porta com um maço. O Soneca foi de elevador até ao 6º andar. A porta não abriu e ele adormeceu lá dentro. O Feliz subiu até ao 7º e encontrou a porta no trinco. Entrou, carregou os computadores e telefones portáteis e deliciou-se com o recheio do frigorífico. Ao descer acordou o Soneca.

Até ver esta é a explicação mais plausível para um assalto da noite passada. Os ladrões entraram em todos os andares, excepto no 6º. A sede do Visões Úteis. Aceitam-se outras versões.

A propósito, ou talvez não, hoje no Público li que as rendas dos escritórios no Porto tem tido aumentos comparáveis com os de Londres. Mais um mistério, ou mais um sinal de uma cidade de muros e fossos? Como a deste map from memory?


10 fevereiro 2008

O senhor nunca quis ser presidente da câmara

E é por isso natural que não se queira preocupar com teatros municipais, ou pavilhões desportivos da autarquia ou mercados ou o que seja. Quem não acha normal a privatização total de uma cidade pode, entre outras coisas, juntar o seu nome a outros em nome do Mercado do Bolhão. Temos muito pouco tempo.