27 abril 2007

mais prendas na caixa do correio

1970 (retrato)

A minha geração já se calou, já se perdeu, já amuou,
já se cansou, desapareceu, ou então casou, ou então mudou,
ou então morreu, já se acabou.

A minha geração de hedonistas e de ateus, de anti-clubistas,
de anarquistas, deprimidos e de artistas e de autistas,
estatelou-se docemente contra o céu.

A minha geração ironizou o coração, alimentou a confusão,
brincou ás mil revoluções amando gestos e protestos e canções
pelo seu estilo controverso.

A minha geração só se comove com excessos, com hecatombes,
com acessos de bruta cólera, de mortes, de misérias, de mentiras,
de reflexos, da sua funda castração.

A minha geração é a herdeira do silêncio,
dos grandes paizinhos do céu,
da indecência, do abuso,
e um belo dia esqueceu tudo e fez-se à vida
na cegueira do comércio.

A minha geração é toda a minha solidão, é a flor da ausência, sonho vão,
aparição, presságio, fogo-de-artifício, toda vício, toda boca,
e pouca coisa na mão.

Vai minha geração, ergue a cabeça e solta os teu filhos no esplendor
do lixo e do descuido, deixa-te ir enquanto o sabor acre de resistência vai corroendo a doçura da sua infância.
Vai minha geração, reage, diz que não é nada assim,
que é um lamentável engano, erro tipográfico, estatística imprecisa, puro
preconceito, que o teu único defeito é ter demasiadas
qualidades e tropeçar nelas.
Vai minha geração, explica bem alto a toda a gente que és por demais
inteligente para sujar as mãos neste velho processo, triste traste de Deus,
de fingir que o nosso destino é ser um bocadinho melhor do que antes.
Vai minha geração, nasceste cansada, mimada, doente por tudo e por nada,
com medo de ser inventada, o que é que te falta agora que não te falta nada?
Poderá uma pobre canção contribuir para a tua regeneração
ou só te resta morrer desintegrada?

Mas minha geração, valeu a trapaça, até teve graça,
tanta conversa, tanta utopia tonta, tanto copo,
e a comida estava óptima! O que vamos fazer?

JP Simões, "1970"


numa mensagem do Nuno (que aqui às vezes aparece como Fernando) a propóstito do "prosaico geracional"

25 abril 2007

25 de Abril na caixa de correio

Já tínhamos um dia do Pai
Um dia da Mãe
Um dia da Virgem Mãe
Um dia de Camões e da Pátria Madrasta
Um dia da República das Bananas
Um dia da Restauração dos Braganças
Um para Pentecostes de costas largas
Um para o Corpo de Deus que se lixem as criaturas
Um para a Ascensão, nenhum para Queda

Faltava
Faltava como Pão para a Boca do Sonho
Um dia para a Orfandade Alegre
Para a Desobediência Necessária
Para o Olho da Rua
Para a Sede que lhes tínhamos
Para as Grandes Fomes
E para as Grandes Indigestões
Para as Noites Curtas sem polícias nem ladrões
Para os Filhos da Madrugada

E esse dia foi o 25 de Abril
E esse foi o dia de saber o que faz falta

Regina G.
Abril de 2007

23 abril 2007

do prosaico e do denso

Tive o privilégio de ler o romance inédito do Vasco Barreto. Nunca tinha lido nada tão próximo de mim; a mesma geração e o mesmo local - o mesmo "aqui e agora", como diríamos no Visões. Gostei muito, mesmo muito, e mais não digo. É a ler. Chama-se "Correr para dentro" e há-de ser publicado.

A propósito do romance, a propósito de conversas que começaram a propósito do romance, não consigo deixar de pensar como o nosso simples, o nosso, o tal da geração dos trinta, parece sempre tão prosaico face ao simples com que crescemos. O da literatura, do teatro, da música, que lemos, vimos, ouvimos e continuamos a ler, ver, ouvir.

O simples essencial, aquele que é inerente a a qualquer obra de arte, perdeu densidade. É prosaico, mesmo muito prosaico. Os conceitos, as estruturas narrativas, as diversas camadas de cada obra, podem ser terrivelmente complexas. Mas o simples, o fundamental, o que nos liga, é indescutivelmente prosaico. Quando não é, o todo é intolerável e indesculpavelmente pretencioso.

Porque é que é prosaico? Porque é que é bom que seja prosaico? E porque é que mesmo assim fica aquela sensação estranha de "eu sei que isto não é assim que se deve fazer"? Ou de "desculpem lá, mas nós gostamos mesmo assim"?

Três razões, bastante óbvias, me assaltam:

1. Parece-nos necessariamente corriqueiro o que está mais próximo. O "nosso aqui e agora" tem de ser prosaico. O dos outros é sempre mais poético. A distância provoca uma incompreensão que, quando não afasta, é fascinante. E mesmo que não seja, crescemos a aprender que era.

2. Cultivando um estilo mais ou menos autista, todos criamos para o público que existe. E a arte democratizou-se. Como o ensino. Podemos bater com a cabeça na parede e dizer que as pessoas são cada vez mais estúpidas, que só gostam de parvoíces, que embrutecem a cada dia de sofá. O que é verdade. Mas também é verdade que falamos de um universo enorme de pessoas. Um universo que inclui muitos que, até há bem pouco tempo, eram tratados como inexistentes.
Há quem enterre a cabeça na areia e viva na ilusão de um público de pares rodeado de um mar infecto de estupidez. Normalmente fingem também que são de outro tempo e lugar e o resultado oscila entre o simplesmente ridículo e o insuportavelmente pretencioso. Note-se que reservo o simplesmente ridículo para o que é desprovido de qualquer interesse e o insuportavelmente pretencioso para os casos em que sofro ao ver o bom afogado pelo pretencioso.

3. À medida que as estruturas narrativas se complexificam a linguagem despe-se. É tudo uma questão de equilíbrio. Ou, pelo menos, de equilíbrio aparente. Enganamos o nosso cérebro, prometemos mais informação com menos esforço, e ele acredita. O difícil é captar a atenção o tempo suficiente para criar a necessidade do resto. Um especialista em toxicodependência, ou em história das toxicodependências, seria a pessoa ideal para explicar esta parte.

Um destes dias volto cá.

04 abril 2007

vivemos e sobrevivemos

"A Frente do Progresso" teve público. Está a ter público. Em todos os espectáculos. Mesmo em férias da páscoa. Mesmo no domingo à tarde. Mesmo na terça-feira à noite. E eu estou contente, mas não é por isso.

Os números de público que temos tido são estatisticamente bons. Em cada dia nos tentam preparar para a desgraça. E a desgraça teima em não aparecer. Felizmente. Mas quando é que o Porto se transformou numa cidade onde é quase heróico fugir à desgraça das más plateias?

Eu estou contente, mas não por causa das "boas plateias". Eu queria lotações esgotadas todos os dias e público em fúria a reclamar temporadas mais longas. Mas eu não sou razoável, eu sei. E desde quando é que é bom ser razoável?

Eu estou contente porque um dos meus amigos mais queridos e antigos foi ver ontem o espectáculo e gostou. Gostou bastante. E em conversa começou a falar sobre os espectáculos todos do Visões que estão para trás. E de repente todos eles ganharam vida e eu fiquei cheia de saudades de os fazer. E inchada de orgulho por saber que os ambientes que criámos e as histórias que contámos se fundiram em outras memórias e são parte integrante de outras vidas.

Eventualmente isto também quer dizer que estou a envelhecer. O que não é mau.


1. O que é uma má plateia? O que é uma boa plateia? Neste momento, nesta cidade? Ao que consigo perceber pelas conversas de corredor das gentes do teatro o número 20 é mágico. Menos é a desgraça, mais já não é mau. "A Frente do Progresso", no pior dia, teve bem mais que o dobro. Dizem-me que é bom. Eu acho que é mau. Mas eu, como diria a nossa gata, "tenho mau feitio".
2. Um outro estudo estatístico, este centrado no meu umbigo, diz ainda que as plateias duplicam quando perfeitos desconhecidos vão ter com os funcionários do teatro no fim do espectáculo para dar efusivamente parabéns pelo trabalho. Ontem a sala esgotou.

01 abril 2007

e o narrador...

Deixemos então pousar o problema de saber se a incompreensão entre os dois palermas passa ou não passa, e vamos ao narrador.

É certo que o narrador/ a narradora acaba por servir para fazer de uma forma expedita a passagem do tempo. Mas não é para isso que lá está, nem é por isso que é necessária. Na realidade, e à boa maneira de Ibsen, o problema da passagem de tempo resolvia-se com 2 palavras mais numa das deixas dos tontos. A Narradora não serve o desenrolar ou a compreensão da historia. Por isso incluímos a piadinha da repetição sobre a Melie ("A Melie era a filha dele" " A Melie é a minha filha").

A Narradora serve precisamente o tal teatrinho de bolso/ teatrinho de papel. É uma distanciação brechtiana ao estilo Charlie e Lola. Porque o que torna "An Outpost of Progress" especial é a voz do narrador. Uma voz que nos lembra constantemente que esta é a sua visão dos acontecimentos e não um relato histórico. Este conto é uma tese em que os dados são assumidamente manipulados para provar a hipótese. No teatrinho de papel a narradora também faz o que quer com os seus bonequinhos.



Não quero que mudes de opinião, nem acharia saudável que concordássemos, mas continuo a achar que devias ir ver o espectáculo mais uma vez. A estreia não correu particularmente bem, e a temperatura da sala não ajudou. São os riscos do "vivo". Agora que em palco tudo está mais solto e equilibrado, que já corrigiram o ar condicionado e que (infelizmente!) não me cheira que voltemos a ter 250 aquecedores na plateia, tudo me parece mais claro.