26 março 2008

ainda o discurso de Obama

fiz um comentário a um post do João que decidi transformar em post, já que explica em parte o meu post anterior (estou a gostar de usar a palavra post tantas vezes neste post). Aqui fica:

Não me parece que o discurso do Obama dê uma explicação racial para a pobreza. Analisa essa questão, que é parte integrante da questão da pobreza. E fá-lo por causa do escândalo, é certo. Mas o que me parece mais importante no discurso é expor as causas das desconfianças mútuas. Falar abertamente é essencial para permitir aos pobres serem agentes das políticas de combate à pobreza. Nos últimos tempos tenho tido algum contacto com população de bairros socias complicados. Garanto-te que precisávamos de um discurso destes adaptado à nossa realidade. Temos, na pobreza e limiar da pobreza, trabalhadores com salários insultuosos e beneficiários de rendimento social de inserção que se olham mutuamente com desconfiança. E temos também tensões raciais, ainda que diferentes e com outras causas - e igualmente a precisarem de que se fale delas de forma séria. Pior ainda, temos técnicos no terreno que olham os pobres com desconfiança. E temos paternalismo a mais.

O discurso do Obama tem ainda um outro mérito muito importante: percebe-se. Não exige determinada escolaridade ou vida intelectual dos interlocutores. Sem ser simplista é simples. As elites portuguesas adoram ser crípticas para a maior parte da população. Mais importante do que discutir uma ideia é mostrar que se tem eventualmente uma grande ideia. De preferência escondida numa frase do tamanho de um parágrafo, cheio de referências a outros e ao próprio, com uma construção e um vocabulário dignos da melhor literatura do século XIX. Não há pachorra.


24 março 2008

“Uma união mais perfeita”

(discurso integral de Barack Obama proferido a 18 de Março de 2008, no Centro Constitucional, em Filadélfia, Pensilvânia, Estados Unidos da América)

“"Nós, o povo, para formarmos uma união mais perfeita"

Há duzentos e vinte anos, num edifício que ainda existe do outro lado da rua, um grupo de homens juntou-se e, com estas simples palavras, lançou a improvável experiência da América na democracia. Agricultores e académicos, homens de estado e patriotas, que atravessaram um oceano para escapar à tirania e à perseguição, concretizaram a sua declaração de independência numa convenção em Filadélfia que durou até à Primavera de 1787.
O documento que produziram foi assinado mas nunca terminado. Estava manchado com o pecado original desta nação; a escravatura. Uma questão que dividiu os colonos e provocou o impasse na convenção que só foi ultrapassado quando os fundadores optaram por permitir que o tráfico de escravos continuasse por, pelo menos, mais vinte anos e por deixar a decisão final às gerações vindouras.
É claro que a resposta à questão da escravatura já estava na nossa Constituição - uma Constituição que assenta no ideal de igual cidadania aos olhos da lei; uma Constituição que promete liberdade ao seu povo, e justiça, e uma União que pode e deve ser aperfeiçoada ao longo do tempo.
Mas as palavras no pergaminho não seriam suficientes para libertar os escravos ou dar aos homens e mulheres de todas as cores e credos a totalidade dos seus direitos e obrigações como cidadãos dos Estados Unidos. Seriam precisos americanos em sucessivas gerações capazes de fazer a sua parte - através de protestos e luta, nas ruas e nos tribunais, através de uma guerra civil e da desobediência civil e sempre correndo grandes riscos - para encurtar a distância entre as promessas dos nossos ideais e a realidade do seu tempo.
Esta foi uma das tarefas a que nos propusemos no início desta campanha - continuar a longa marcha dos que vieram antes de nós, uma marcha por uma América mais justa, com mais igualdade e mais liberdade, mais solidária e mais próspera. Eu decidi candidatar-me à presidência neste momento da história porque acredito profundamente que não podemos responder aos desafios do nosso tempo a menos que respondamos juntos - a menos que aperfeiçoemos a nossa união compreendendo que podemos ter percursos diferentes, mas temos esperanças comuns; que podemos não ser parecidos e podemos não vir dos mesmos lugares, mas queremos todos movermo-nos na mesma direcção - rumo a um futuro melhor para os nossos filhos e para os nossos netos.
Esta crença nasce da minha fé inabalável na decência e generosidade do povo americano. Mas também nasce da minha própria história americana.
Eu sou filho de um homem negro do Quénia e de uma mulher branca do Kansas. Fui criado com a ajuda de um avô branco que sobreviveu à Depressão e serviu no exército de Patton durante a II Guerra Mundial e por uma avó branca que trabalhava numa linha de montagem de bombas em Fort Leavenworth enquanto ele estava além-mar. Estudei em algumas das melhores escolas da América e vivi numa das nações mais pobres do mundo. Sou casado com uma americana negra que transporta em si o sangue de escravos e de esclavagistas - uma herança que passamos às nossas duas filhas. Eu tenho irmãos, irmãs, sobrinhas, sobrinhos, tios e primos de todas as raças e todas as cores, espalhados por três continentes, e, enquanto viver, nunca esquecerei que em nenhum outro país do mundo a minha história seria sequer possível.
É uma história que não fez de mim o mais convencional dos candidatos. Mas é uma história que semeou na minha matriz genética a ideia de que esta nação é mais do que a soma das suas partes - de que a partir de muitos, nós somos verdadeiramente um.
Ao longo do primeiro ano desta campanha, contra todas as previsões, vimos quão sedento está o povo americano desta mensagem de unidade. Apesar da tentação de encarar a minha candidatura unicamente na perspectiva racial, nós comandámos vitórias em Estados com algumas das populações mais brancas do país. Na Carolina do Sul, onde ainda se içam bandeiras da Confederação, construímos uma forte coligação de afro-americanos e americanos brancos.
Isto não quer dizer que a questão racial não tenha sido assunto na campanha. Em diferentes etapas da campanha, alguns comentadores acusaram-me de ser ou "muito negro" ou "não ser suficientemente negro". Nós vimos as tensões raciais virem à superfície na semana que antecedeu as primárias da Carolina do Sul. A imprensa escrutinou todas as sondagens à procura das últimas evidências de polarização racial, não só entre brancos e negros, mas também entre negros e mestiços.
E, no entanto, foi apenas nas últimas duas semanas que a questão racial tomou um rumo particularmente decisivo nesta campanha.
De um lado do espectro ouvimos a insinuação de que a minha candidatura é de algum tipo de exercício de acção afirmativa; que se baseia unicamente no desejo de liberais ingénuos de alcançar a reconciliação racial sem grandes custos. De outro lado, ouvimos o meu antigo pastor, o Reverendo Jeremiah Wright, usar uma linguagem incendiária para expressar opiniões que podem potencialmente não só aumentar a divisão racial como denegrir a grandeza e generosidade da nossa nação; o que naturalmente ofendeu igualmente brancos e negros.
Eu já condenei, de forma inequívoca, as afirmações do Reverendo Wright que causaram esta controvérsia. Para alguns permanecem questões incómodas. Saberia eu que ele era um crítico acutilante da política interna e externa americana? Claro que sim. Teria eu ouvido alguma vez afirmações suas que poderiam ser considerados controversas, enquanto frequentava a sua igreja? Sim. Discordarei eu fortemente de muitas das suas opiniões políticas? Com certeza - como também tenha a certeza que muitos de vós já ouviram afirmações dos vossos pastores, padres ou rabis com que discordavam fortemente.
Mas as afirmações que causaram a recente tempestade não foram apenas controversas. Não foram apenas um esforço de um líder religiosos para denunciar injustiças. Foram sim expressão de uma visão profundamente distorcida deste país - uma visão que olha para o racismo branco como endémico e que eleva tudo o que há de mau na América acima de tudo o que há de bom na América; uma visão que olha para os conflitos do Médio Oriente como resultado das acções de aliados como Israel e não das perversas ideologias de ódio do Islão radical.
E, por isso, as afirmações do Reverendo Wright não estavam apenas erradas, elas também dividem; dividem numa altura em que precisamos de unidade, são marcadamente raciais numa altura em que precisamos de nos unir para fazer frente a uma série de problemas monumentais – duas guerras, a ameaça terrorista, uma economia em queda, uma crise crónica no sistema da saúde e uma potencialmente devastadora alteração climática; problemas que não são de negros ou de brancos ou de latinos ou de asiáticos, mas sim problemas que nos atingem a todos.
Tendo em conta o meu passado, as minhas posições políticas, os meus valores e ideais, haverá com certeza quem pense que as minhas palavras de condenação das afirmações não são suficientes. Porque é que sequer me associei ao Reverendo Wright, poderão perguntar? Porque não frequentar outra igreja? E eu confesso que, se tudo o que eu soubesse sobre o Reverendo Wright fossem aquelas tiradas dos sermões repetidas incessantemente na televisão e no You Tube, ou se a Igreja Unida da Trindade de Cristo correspondesse à caricatura que dela fizeram os comentadores, sem dúvida que eu teria essa reacção. Mas a verdade é que isso não é tudo o que eu sei sobre aquele homem. O homem que eu conheci há mais de vinte anos é o homem que me ajudou a construir a minha fé Cristã, um homem que me ensinou as obrigações de amor ao próximo, de tratar dos doentes e de levantar os pobres. Um homem que serviu o seu país como militar, que estudou e ensinou nalgumas das melhores universidades e dos melhores seminários do país, e que ao longo de mais de 30 anos tem liderado uma igreja que serve a comunidade realizando o trabalho de Deus na Terra – alojando os desalojados, pregando aos necessitados, oferecendo centros de dia, bolsas de estudo e celebrações para os reclusos, e apoiando as vítimas do HIV/SIDA.
No meu primeiro livro, “Dreams From My Father “ [“Sonhos do meu Pai”], descrevo a experiência do primeiro serviço religioso o que assisti na Trindade: “As pessoas começaram a gritar, a levantar-se e a bater palmas, um vento poderosos elevava a voz do Reverendo até ao tecto ... E naquela única palavra – esperança! - eu ouvi algo mais; aos pés daquela cruz, dentro das milhares de igrejas espalhadas pela cidade, imaginei as histórias da gente negra comum fundirem-se com a história de David e Golias, Moisés e o Faraó, os cristãos nos antros dos leões, o vale de ossos secos de Ezequiel. Estas histórias – de sobrevivência, de liberdade, de esperança – tornaram-se a nossa história, a minha história; o sangue que foi derramado era o nosso sangue, as lágrimas eram as nossas lágrimas; e esta igreja negra, neste dia luminoso, era novamente um barco transportando a história de um povo para as novas gerações e para um mundo mais vasto. As nossas provações e triunfos tornaram-se imediatamente únicas e universais, negras e mais do que negras; ao narrar o nosso percurso, as histórias e as canções deram-nos os meios para resgatar as memórias de que não nos devemos envergonhar... memórias que toda a gente deve estudar e acarinhar - e a partir das quais podemos começar a reconstruir.”
Esta é a minha experiência na Trindade. Como em outras igrejas predominantemente negras de todo o país, a Trindade encarna a comunidade negra na sua totalidade – o médico e a mãe do rendimento mínimo, o estudante-modelo e o antigo membro do gangue. Como noutras igrejas negras, os serviços religiosos da Trindade estão impregnados de risos ruidosos e, às vezes, de mau génio. Estão cheios de danças, palmas e gritos que podem assustar o ouvido inexperiente. A igreja contém em si a gentileza e a crueldade, a inteligência aguda e a chocante ignorância, as lutas e os sucessos, o amor, e também a amargura e os preconceitos, que formam o todo da experiência negra na América.
E isto talvez ajude a explicar a minha relação com o Reverendo Wright. Com todas as suas imperfeições, ele tem sido como família para mim. Fortaleceu a minha fé, oficializou o meu casamento e baptizou as minhas filhas. Nunca, em nenhuma das minhas conversas com ele, o ouvi denegrir qualquer grupo étnico e sempre o vi tratar os brancos com que se relaciona com cortesia e respeito. Ele contém em si as contradições – boas e más – da comunidade que tem servido diligentemente ao longo de tantos anos.
Eu não o posso repudiar, como não posso repudiar a comunidade negra. Eu não o posso repudiar, como não posso repudiar a minha avó branca – uma mulher que ajudou a criar-me, uma mulher que se sacrificou repetidamente por mim, uma mulher que me amou tanto quanto tudo o que amou neste mundo, mas uma mulher que uma vez confessou que tinha medo quando um homem negro passava por ela na rua, e que, em mais do que uma ocasião, proferiu estereótipos raciais e étnicos que me envergonharam.
Estas pessoas são parte de mim. E são parte da América, este país que eu amo.
Alguns irão ver nestas palavras uma tentativa de justificar ou desculpar afirmações que são simplesmente indesculpáveis. Asseguro-vos que não são. Presumo que a opção politicamente mais segura fosse saltar deste episódio para outro e esperar que este caísse no esquecimento. Podemos descartar o Reverendo Wright rotulando-o como excêntrico ou demagogo, da mesma forma que outros descartaram Geraldine Ferraro, no rescaldo das suas recentes afirmações, como alguém com preconceitos raciais fortemente enraizados.
Mas eu acho que esta nação, neste momento, não pode ignorar a questão racial. Estaríamos a cometer o mesmo erro que o Reverendo Wright cometeu nos seus sermões ofensivos sobre a América – a simplificar e estereotipar o que é negativo a tal ponto que distorcemos a realidade.
A verdade é que as declarações que foram feitas e as questões que foram levantadas nas últimas semanas reflectem complexidades da questão racial neste país que nunca foram realmente debatidas – uma parte da nossa união que ainda tem de ser aperfeiçoada. E se agora abandonamos o assunto, se simplesmente nos refugiarmos nos nossos respectivos cantos, nunca seremos capazes de nos juntar para resolver problemas como os cuidados de saúde, a educação ou a necessidade de arranjar trabalho digno para todos os americanos.
Para compreender isto precisamos de nos lembrar de como chegámos até aqui. Como William Faulkner escreveu “O passado não está morto e enterrado. De facto, ainda nem sequer passou.” Nós não precisamos de recitar a história de injustiça racial deste país. Mas precisamos de nos lembrar que as disparidades que existem hoje na comunidade afro-americana estão directamente ligadas às desigualdades do passado, desde as primeiras gerações que sofreram o brutal legado da escravatura e de Jim Crown. As escolas segregacionistas eram, e são, piores; ainda não resolvemos este problema, cinquenta anos após Brown v. Ministério da Educação, e, a pior educação que fornecem, dantes como agora, ajuda a explicar o persistente fosso entre os resultados dos estudantes negros e dos estudantes brancos de hoje.
A discriminação legalizada – que vedava aos negros, muitas vezes com recurso à violência, o direito à propriedade, que impedia que os homens de negócios negros tivessem acesso ao crédito ou que os proprietários negros tivessem acesso a hipotecas, que excluía negros dos sindicatos, das forças policiais, dos bombeiros – impediu as famílias negras de acumular qualquer tipo de património que passasse para as gerações futuras. Este percurso ajuda a explicar o fosso entre património e rendimento de brancos e negros, e as bolsas de pobreza que persistem em tantas das nossas comunidades urbanas e rurais.
A falta de oportunidades económicas para os homens negros, e a vergonha e frustração que advêm da incapacidade de sustentar a família, contribuíram para a erosão das famílias negras – um problema que, durante muitos anos, pode ter sido agravado pelas políticas sociais. E a falta de serviços básicos em tantos dos bairros negros urbanos – parques infantis, policiamento, recolha regular do lixo e regras urbanísticas – ajudaram a criar um ciclo de violência, deterioração e negligência que continua a perseguir-nos.
É esta a realidade em que o Reverendo Wright e outros afro-americanos da sua geração cresceram. A geração do final dos anos 50, início dos anos 60, que viveu a segregação e a quem foi sistematicamente retirada a terra e a oportunidade. O que é extraordinário não é terem tantos falhado por causa da discriminação, mas sim terem tantos homens e mulheres vencido os obstáculos; tantos foram capazes de criar caminhos onde só existiam muros para que homens como eu, que vieram depois deles, tivessem por onde avançar.
Mas por cada um dos que conseguiu agarrar um pedaço do sonho americano, há muitos que não conseguiram – aqueles que acabaram por ser derrotados, de uma forma ou outra, pela discriminação. Essa herança da derrota foi passada às gerações seguintes - aqueles jovens e, cada vez mais, aquelas jovens que vemos nas esquinas ou a apodrecer nas nossas prisões, sem esperança e sem perspectivas de futuro. Mesmo para os negros que venceram, as questões raciais e o racismo continuam a definir a forma como vêem o mundo. Nos homens e nas mulheres da geração do Reverendo Wright, as memórias da humilhação, da incerteza e do medo ainda não se desvaneceram; como também ainda não se desvaneceu a raiva e a amargura desses anos. Essa raiva pode não ser expressada em público, em frente aos colegas ou amigos brancos. Mas encontra voz no barbeiro ou à volta da mesa de refeições. Às vezes essa raiva é explorada por políticos, que querem ganhar votos com a questão racial ou mascarar os seus insucessos.
E ocasionalmente encontra voz na igreja nas manhãs de domingo, no púlpito e nos bancos da igreja. O facto de tantas pessoas ficarem surpreendidas com a raiva de alguns dos sermões do Reverendo Wright faz-nos lembrar a verdade do velho ditado que diz que a hora mais segregada da vida americana acontece nas manhãs de domingo. Essa raiva nem sempre é produtiva; de facto, na grande maioria das vezes, afasta a nossa atenção da efectiva resolução dos problemas; impede-nos de encarar a nossa própria cumplicidade com a nossa condição, e impede a comunidade afro-americana de forjar as alianças necessárias para provocar uma mudança real. Mas a raiva existe, é poderosa, e desejar simplesmente que desapareça, condená-la sem perceber as suas raízes, só serve para aumentar o abismo de incompreensão que existe entre as raças.
A verdade é que existe uma raiva parecida em segmentos da comunidade branca. A maior parte dos americanos brancos trabalhadores e de classe média não se sentem particularmente privilegiados pela sua raça. A sua experiência é a experiência dos imigrantes – a eles ninguém lhes deu nada, tiveram de começar tudo do zero. Trabalharam arduamente toda a vida, para muitas vezes verem os seus empregos partir para além-mar ou as suas reformas desaparecerem depois de uma vida de trabalho. Estão ansiosos quanto ao futuro e sentem que os seus sonhos lhes estão a escapar; numa época de salários estagnados e competição global, as oportunidades são vistas como um jogo de agora ou nunca em que os teus sonhos são realizados à minha custa. E, por isso, quando ouvem que têm de mandar os seus filhos para uma escola do outro lado da cidade, quando sabem que um afro-americano tem vantagens no acesso a um bom emprego ou a um lugar para o filho numa boa escola por causa de uma injustiça que eles próprios não cometeram, quando lhes dizem que os seus medos relativos à criminalidade urbana são de alguma forma preconceituosos, o ressentimento vai crescendo.
Tal como a raiva da comunidade negra, estes ressentimentos também nem sempre se expressam em situações sociais. Mas ajudaram a moldar a paisagem política de, pelo menos, uma geração. A raiva contra a segurança social e a acção afirmativa ajudou a forjar a coligação Reagan. Há políticos que exploram repetidamente o medo da criminalidade por motivos eleitoralistas. Há apresentadores de televisão e comentadores conservadores que construíram toda a sua carreira a desmascarar falsas alegações de racismo enquanto descartam discussões legítimas sobre injustiças e desigualdades raciais como coisas do politicamente correcto ou racismo invertido.
Tal como a raiva dos negros provou ser muitas vezes contraproducente, também os ressentimentos dos brancos impedem de olhar com atenção para os verdadeiros culpados do esmagamento da classe média - uma cultura de corporações corrompida pela manipulação do mercado, as questionáveis práticas contabilísticas e a ganância de curto prazo; políticas económicas que favorecem poucos em detrimento de muitos. E, ainda assim, desejar que os ressentimentos dos americanos brancos desapareçam, rotulá-los de desinformados ou racistas, sem reconhecer que nascem de preocupações legítimas – isto também aumenta a divisão racial e bloqueia os caminhos para a compreensão.
É aqui que estamos agora. Estamos há anos atolados num braço de ferro racial. Ao contrário do que afirmam alguns dos meus críticos, negros e brancos, eu nunca fui ingénuo ao ponto de pensar que poderíamos ultrapassar as nossas cisões raciais num único ciclo eleitoral ou com uma única candidatura – particularmente uma candidatura tão imperfeita quanto a minha.
Mas afirmei a minha firme convicção – uma convicção enraizada na minha fé em Deus e no povo americano – que trabalhando juntos podemos ultrapassar algumas das nossas feridas raciais e que, de facto, temos forçosamente de o fazer se queremos continuar no caminho para uma união mais perfeita.
Para a comunidade afro-americana, este caminho significa reconhecer o fardo do nosso passado sem nos tornarmos vítimas do nosso passado. Significa continuar a insistir numa justiça plena em todos os aspectos da vida americana. Mas também significa aliar as nossa exigências particulares – de melhores cuidados de saúde, melhores escolas e melhores empregos – às aspirações mais vastas de todos os americanos – as mulheres brancas que lutam para quebrar o tecto de vidro, os homens brancos que foram despedidos, os imigrantes que tentam alimentar a as suas famílias. E significa assumir total responsabilidade pelas nossa vidas – exigindo mais dos nossos pais, passando mais tempo com os nossos filhos, lendo para eles, e ensinando-lhes que, embora possam vir a enfrentar desafios e discriminação nas suas vidas, nunca devem sucumbir ao desespero ou ao cinismo, que devem sempre acreditar que podem escrever o seu próprio destino.
Ironicamente, este conceito essencial da América – e sim, conservador – de ajudar-se a si próprio aparece com frequência nos sermões do Reverendo Wright. Mas aquilo que o meu antigo pastor foi muitas vezes incapaz de perceber, é que agir de acordo com o ajudar-se a si próprio também implica acreditar que a sociedade pode mudar.
O erro profundo do Reverendo Wright não está no que diz sobre o racismo na nossa sociedade. É falar como se a nossa sociedade fosse estática; como se não tivesse existido qualquer progresso, como se este país – um país que tornou possível para um dos seus membros candidatar-se ao mais alto cargo na terra e construir uma coligação de brancos e negros, latinos e asiáticos, ricos e pobres, novos e velhos – estivesse irremediavelmente preso ao seu trágico passado. Mas o que nós sabemos – o que nós vemos – é que a América pode mudar. É essa a verdadeira alma desta nação. O que nós já alcançámos dá-nos a esperança – a audácia de ter esperança – naquilo que podemos e devemos alcançar amanhã.
Na comunidade branca, o caminho para uma união mais perfeita significa reconhecer que as enfermidades que afectam a comunidade afro-americana não existem apenas na mente dos negros; que a herança da discriminação – e os actuais incidentes de discriminação, ainda que menos visíveis do que no passado – são reais e devem ser encarados. Não apenas com palavras, mas com actos – investindo nas nossas escolas e nas nossas comunidades, fazendo cumprir as nossas leis de direitos civis e assegurando a equidade do nosso sistema de justiça criminal, e oferecendo a esta geração as escadas de oportunidade que não estiveram disponíveis para as gerações anteriores. É preciso que todos os americanos compreendam que a realização dos teus sonhos não tem de ser à custa dos meus; que investir na saúde, segurança social e na educação das crianças negras, mestiças e brancas acabará por ajudar toda a América a prosperar.
No fundo, o que é preciso não é mais, nem menos, do que aquilo que todas as grandes religiões do mundo exigem – que façamos aos outros aquilo que gostaríamos que nos fizessem a nós. Temos de proteger os nosso irmãos, é o que nos dizem as Escrituras. Temos de proteger as nossa irmãs. Temos de encontrar aquilo que todos temos em comum e fazer com que as nossas politicas também reflictam esse espírito.
Porque neste pais podemos escolher. Podemos aceitar uma politica que semeia divisão, conflito e cinismo. Podemos lidar com a questão racial apenas como entretenimento – como fizemos com o julgamento de O.J. – ou no acordar da tragédia, como fizemos no rescaldo do Katrina – ou como papel de parede dos telejornais. Podemos passar os sermões do Reverendo Wright em todos os canais, todos os dias, falar sobre eles de agora até às eleições e fazer com que a única questão desta campanha seja saber se o povo americano acredita ou não que eu alguma vez tenha acreditado ou simpatizado com as suas palavras mais ofensivas. E podemos ir arranjar uma qualquer gafe de um apoiante da Hillary para provar que ela está a jogar a cartada racial, ou podemos especular sobre se os homens brancos resolvem ou não ir todos em manada votar no John McCain nas eleições gerais independentemente das suas políticas.
Podemos fazer isso.
Mas se o fizermos, asseguro-vos que na próxima eleição vamos estar a falar sobre outra distracção qualquer. E depois outra. E depois outra. E nada irá mudar.
Essa é uma opção. Ou, neste momento, nesta eleição, podemos unir-nos e dizer: “Desta vez não.” Desta vez nós queremos falar das escolas sobrelotadas que estão a roubar o futuro às crianças negras e às crianças brancas e às crianças asiáticas e às crianças hispânicas e às crianças nativo-americanas. Desta vez nós queremos rejeitar o cinismo que nos diz que esses miúdos não aprendem, que esses miúdos não gostam de nós e que são um problema dos outros. As crianças da América não são esses miúdos, são os nossos miúdos, e nós não os vamos deixar para trás na economia do século XXI. Desta vez não.
Desta vez queremos falar de como os serviços de urgência estão cheias de brancos e negros e hispânicos que não têm acesso a cuidados de saúde, que sozinhos não têm poder para lutar contra os interesses especiais em Washington, mas que podem vencê-los se o fizermos juntos.
Desta vez queremos falar das fábricas encerradas que garantiam uma vida digna a homens e mulheres de todas as raças, das casas à venda que pertenceram a americanos de todas as religiões, todas as regiões, todos os lados da vida. Desta vez queremos falar sobre o facto de o real problema não ser alguém diferente de mim poder ficar com o meu trabalho, mas a corporação para quem trabalhamos ir mudar-se para além-mar por nada mais do que lucro.
Desta vez queremos falar sobre os homens e as mulheres de todas as raças e credos que serviram juntos, lutaram juntos e sangraram juntos sob a mesma bandeira. Queremos falar sobre como podemos trazê-los de novo para casa e tirá-los de uma guerra que nunca deveria ter sido autorizada e que nunca deveria ter sido travada e queremos falar sobre como podemos mostrar o nosso patriotismo cuidando deles e das suas famílias e dando-lhes as regalias que merecem.
Eu não me candidataria a Presidente se não acreditasse com todo o meu coração que isto é o que a vasta maioria dos americanos quer para este país. Esta união pode nunca vir a ser perfeita, mas geração após geração mostrou que pode ser sempre aperfeiçoada. E hoje, sempre que me sinto com dúvidas ou cínico a respeito desta possibilidade, o que me dá esperança é a próxima geração – os jovens cujas atitudes, valores e abertura à mudança já fizeram história nesta eleição.
Há uma história em particular com que vos quero deixar hoje – uma história que contei quando tive a grande honra de discursar no aniversário do Dr. King na sua igreja natal, Batista Ebenezer, em Atlanta. Há uma jovem mulher branca de vinte e três anos chamada Ashley Baia que organizou a nossa campanha em Florence, na Carolina do Sul. Ela trabalhou para organizar uma comunidade maioritariamente afro-americana desde o início da campanha, e, um dia, estava numa mesa redonda em que toda a gente contava, à vez, a sua história e dizia porque estava ali.
E a Ashley contou que quando tinha nove anos a mãe adoeceu com cancro. E por isso teve de faltar alguns dias ao trabalho, foi despedida e perdeu direito ao sistema de protecção na saúde. Eles tiveram que declarar falência e a Ashley decidiu que tinha de fazer alguma coisa para ajudar a mãe.
Ela sabia que a comida era uma das maiores despesas e então convenceu a mãe que a sua comida favorita era sanduíches de mostarda e molho. Porque essa era a forma mais barata de comer.
Ela fez isto durante um ano até a mãe melhorar, e disse a todos naquela mesa redonda que a razão porque se juntara à campanha foi para ajudar os milhões de outras crianças do país que também querem e precisam de ajudar os seus pais.
Na verdade a Ashley podia ter feito uma escolha diferente. É provável que ao longo da vida alguém lhe tenha dito que a fonte dos problemas da mãe eram os negros que vivem da segurança social e são preguiçosos demais para trabalharem, ou os hispânicos que entram ilegalmente no país. Mas não fez. Ela procurou aliados na sua luta contra a injustiça.
E então, a Ashley acabou de contar a sua história e foi perguntando a todos em volta da mesa as suas razões para apoiarem a campanha. Todos tinham histórias e razões diferentes. Muitos falaram de um problema específico. Até que chegou a vez de um homem de idade negro que tinha estado silenciosamente sentado todo aquele tempo. A Ashley pergunta-lhe porque é que ele está ali. E ele não fala de nenhum problema específico, não diz que é por causa da saúde ou da economia, não diz que é por causa da educação ou da guerra, não diz que é por causa do Barack Obama. Ele diz simplesmente a todos os que estão na sala: “Eu estou aqui por causa da Ashley”.
“Eu estou aqui por causa da Ashley”. Por si só, aquele momento único de reconhecimento entre aquela mulher jovem branca e aquele homem velho negro não é suficiente. Não é suficiente para dar cuidados de saúde aos doentes, ou emprego aos desempregados, ou educação às nossas crianças.
Mas é por aí que começamos. É aí que a nossa união se fortalece. E como tantas gerações perceberam ao longo destes duzentos e vinte e um anos, desde que um grupo de patriotas assinou um documento em Filadélfia, é aí que a nossa perfeição começa.”

Tradução (em cima do joelho) e destaque meus.

Tudo generalidades? Talvez Mas gostava tanto de ouvir alguém falar assim das nossas generalidades. Alguém capaz de expor a sua visão das razões da nossa enorme desconfiança dos outros e do Estado e da nossa enorme dependência dos outros e do Estado. Estou tão farta de um Presidente da República que não acha próprio pronunciar-se sobre o que quer que seja e de um Primeiro-Ministro que só sabe anunciar medidas. Estou tão farta de discursos desinteressantes e mal ditos. Gostava tanto de ouvir alguém que quisesse realmente convencer-me de alguma coisa.

13 março 2008

Legendas vs dobragens

Acabo de ouvir o Herman José no Corredor do Poder explicar que quando em todos os países se dobravam filmes, o regime fascista português optou pelas legendas para poder manipular melhor a informação. Para suavizar conteúdos.
Confesso que não fazia ideia. Nem nunca tinha pensado nisso. Eu, que leio depressa, percebo bem as duas ou três línguas em que são falados quase todos os filmes e programas de televisão que vejo, sou fã de legendas. E sempre pensei que a razão para termos legendas e não dobragens era o facto de a decisão ter estado sempre em pessoas, deste ponto de vista, parecidas comigo.
Independentemente das razões históricas para termos legendas e não dobragens, em tudo o que se destina a maiores de 6 ou 7 anos, faz-me impressão o aparente esmagador consenso sobre esta matéria.
Eu não tenho grandes certezas. Durante muito tempo acreditei piamente na superioridade das legendas. A única forma de respeitar o todo do objecto artístico, de poder usufruir do trabalho dos actores na sua totalidade. E, ainda por cima, fantástico para aprender as diferentes línguas e a sua sonoridade.
Agora dou por mim a pensar se ter legendas em vez de dobragens não impede efectivamente que um grande número de pessoas usufrua de um grande número de objectos. Enquanto eu me deleito com o West Wing, com as suas legendas avassaladoramente rápidas, uma grande maioria dos meus concidadãos é forçado à idiotice das novelas da TVI e outros que tais. E mesmo que as novelas fossem/sejam bem escritas, a verdade é que a desigualdade do universo das escolhas é tremenda. Claro que a mera ideia de ver a voz do John Spencer dobrada me enjoa. Mas será isso o mais importante? Por muito que me custe, não seria melhor aprender a usufruir do trabalho de dois actores (o original e o que o dobra)? A imagem original é livre de legendas.
E quanto às línguas... Quem não vê filmes com legendas não as aprende. Uma boa dobragem pode até ter vantagens do ponto de vista da língua materna. Ou não?
Não sei. Mas sei acima de tudo que isto devia ser discutido. Acho que não é por arrogância de alguns e indiferença de muitos. E, como todos os sintomas de fosso, inquieta-me.
E, já agora, o mínimo era que os contratos de edição de filmes e séries fossem cumpridos. E tivessem todos a opção legendas ou dobragem. Como estipulado mas nunca cumprido.

avisos da casa

O louro anda aqui.

07 março 2008

Compromisso e comprometimento

"Quando acedemos a um posto de poder, estamos já tão cansadas que nos adaptamos a um ambiente machista. Esquecemo-nos de onde viemos", comentou a ministra italiana para as Políticas Europeias, Emma Bonino.

Quando participo em reuniões internacionais, e me escondo para as loucas conversas de telemóvel com as minhas filhotas, dou sempre por mim a pensar: a gente que aqui está ou não tem filhos, ou tem filhos crescidos, ou é homem (e pai em part-time?). Louvam a internet e as vantagens do trabalho em rede, mas não fazem nada nada sem viagens de um lado para o outro. Quem não quer entrar na dança, está fora.

05 março 2008

18 anos de Público e as saudades de um jornal nacional

Como diz o Rui Tavares, o Público é o "meu jornal". Mas é, infelizmente, muito menos do que já foi. Durante muitos anos foi por mérito próprio. Agora é por demérito dos outros. Mas é verdade: também eu aprendi com o Público, com o Eduardo Prado Coelho e o Calvin e Hobbes, a ler jornais de trás para a frente.
O Daniel Oliveira descreve muito do processo de desencanto. Ao que diz sobre a dimensão do projecto inicial apetece-me acrescentar isto: o Público era o único jornal claramente nacional. Agora não é. Mas continua a ser dos poucos (o único) a fazer uma cobertura mínimamente decente do país.
Comecei a ler o Público aos 16 anos. Mais ou menos quando comecei a fazer teatro. A noção de que era normal fazer arte contemporânea tanto em Aveiro, como em Coimbra, em Lisboa, no Porto ou noutro lado qualquer foi-me dada pelo Público.
Eu soube do teatro, bom e mau, que se fazia por todo o país graças às críticas do Manuel João Gomes. Nunca mais ninguém teve noção do todo.
Eu percebi as ténues linhas entre entretenimento e arte com um suplemento de artes total. Quando o "meu mundo" ficou dividido entre Y e o Mil Folhas o "meu jornal" perdeu sentido. E eu perdi paciência para o Ipsílon. Tenho pena.
Tenho saudades de quando um domingo era domingo porque eu lia de fio a pavio o Público e todos os suplementos que não tinha tido tempo para ler durante a semana. O Público mudou e eu também. Cada um para seu lado. Ainda assim é raro o dia que não começa com a leitura dos títulos online e não acaba com o passar de olhos pelas folhas impressas.
E gosto dos jornalistas do Público que conheço.
E só compro outro jornal se tiver mesmo de ser.