29 novembro 2008

IVA e artistas

Vivi na semana passada uma aventura nas finanças, provocada por um acto de negligência de um funcionário, já lá vão 12 anos, e resolvida da melhor maneira por uma funcionária com um elevadíssimo sentido de serviço público (e que me reconciliou com a repartição de finanças).

As minhas andanças pelas repartições e código de IVA tiveram a vantagem de me esclarecer sobre o assunto. E, uma vez que já por aqui se fizeram buscas sobre o assunto, aqui fica o que aprendi:
actores, chefes de orquestra, músicos e outros artistas, actuando quer individualmente quer integrados em conjuntos, para a execução de espectáculos teatrais, cinematográficos, coreográficos, musicais, de music-hall, de circo e outros, para a realização de filmes, e para a edição de discos e de outros suportes de som ou imagem;
estão isentos de IVA ao abrigo do artigo 9º apenas nas:
prestações de serviços efectuadas aos respectivos promotores
Como saber o que é um promotor? Fácil: o registo no IGAC.
Portanto, e a título de exemplo, um actor quando presta um serviço a uma companhia de teatro (entidade registada como promotora de espectáculos no IGAC) está isento de IVA ao abrigo do artigo 9º , mas quando presta um serviço a uma empresa qualquer (por exemplo animação na festa de Natal promovida por uma empresa de marketing) não está isento ao abrigo do artigo 9º. Se tiver alguma isenção será ao abrigo do artigo 53º.

O artigo 53º isenta de IVA quem não tenha atingido dez mil euros de volume de negócios, numa actividade não isenta de IVA. Ou seja, e voltando ao actor que ora trabalha para promotor ora não trabalha; quando num ano ganhar mais de dez mil euros em actividades não isentas de IVA (animações para empresas, formações, etc.), em Janeiro do ano seguinte tem de informar as finanças desse facto e terá de começar a pagar IVA por essas actividades (as prestações a promotores continuam isentas ao abrigo do artigo 9º).

Nota: também está isenta de IVA ao abrigo artigo 9º "A transmissão do direito de autor e a autorização para a utilização da obra intelectual, definidas no Código de Direito de Autor, quando efectuadas pelos próprios autores, seus herdeiros ou legatários".

Cultura, defesa, orçamentos e coisas sobre as quais já não é sequer possível conversar

Nos últimos tempos perguntaram-me várias vezes o que é que eu achava do Ministério da Cultura. Não acho nada. Não há orçamento.

As discussões sobre a importância da Cultura, e a necessidade de ter financiamento público, normalmente vão ter a três becos sem saída: ou se afirma que se investe agora para corrigir o mercado (o que é estúpido), ou se defende que tem sentido financiar património mas não criação (o que é ilógico) ou se justifica que a Cultura merece financiamento porque indirectamente até é muito boa para a economia (o que é passar ao lado da questão, e é perigoso).

E assim, tentanto simultaneamente inovar e seguir a tradição, decidi começar a defender a partir deste momento que o Orçamento da Cultura deve ser equivalente ao da Defesa e devem ter ambas o mesmo nível de investimento do Estado. E porquê? Porque ambas defendem a integridade do território e a sua coesão. Não é óbvio?

Para 2009 o orçamento do Ministério da Defesa representa quase 4% do Orçamento de Estado e o orçamento do Ministério da Cultura fica a baixo dos 0,4%. Temos muito que andar!

4% DO ORÇAMENTO DE ESTADO PARA O MINISTÉRIO DA CULTURA, JÁ!

E se parece algo louco pedir já os 4%, é preciso não esquecer que o objectivo do governo era chegar ao 1% e conseguiu descer até aos o,3. O que prova que nesta matéria não há lugar para a razoabilidade. Para além disso, eu não sei responder a perguntas do tipo "alimenta-se um e deixa-se o outro morrer à fome, ou ficam os dois subnutridos à espera da ajuda humanitária?" (muito menos num país em que se pagam dívidas de jogo a milionários).

Adenda: aconselho a leitura da Obscena que, no último número, tem um belíssimo dossier sobre o orçamento do Ministério da Cultura.

24 novembro 2008

Muros

Estou cansada do cansaço dos outros.
Não tenho tempo para a falta de tempo dos outros.

22 novembro 2008

Pobreza no Porto

Um trabalho, a não perder, de Pedro Neves no Expresso:



De norte a sul do país multiplicam-se os casos de falta de solidez económica, de depressões associadas a fracas condições de vida, ao estilhaçar do trabalho, à inexistência de cuidados de saúde eficazes ou de medidas estruturais que combatam a pobreza.

É no distrito do Porto que a situação é mais grave. Numa área com cerca de 2,5 milhões de habitantes, há cerca de meio milhão de pessoas a viver na pobreza. [...]

Durante a pesquisa para esta série de pequenos documentários, fui a lugares onde morreu a esperança colectiva, onde há gente viva à beira da morte social. São casos escondidos atrás de muros, de janelas e portas fechadas, de portões ferrugentos, de bairros fechados sobre si mesmos. É gente que tropeçou no entulho e na desilusão, nas privações, perdas, angústias, na dolorosa mudança de hábitos. É gente que foi empurrada dos sonhos para o chão. São rostos que encaram a vida como um castigo, actores sociais despidos de sucesso material. São olhares cansados de tanta não sorte, porque não se pode falar de má sorte quando nunca se entendeu o significado da palavra.

Podia - e pode - acontecer a qualquer um de nós. Bastava-nos ter nascido ou crescido num ambiente desfavorável ou que, num determinado momento, a vida tivesse dado outras voltas. Por vezes, é um único acontecimento que desencadeia uma série de reacções que provocam uma drástica mudança de vida: um filho que se tornou toxicodependente, uma mãe que adoeceu, um pai que morreu, uma família analfabeta que nunca se preocupou ou teve condições para educar, um despedimento que se tornou crónico, uma depressão que nunca se tratou.


Via a Baixa do Porto, graças a quem também fiquei a conhecer este belíssimo artigo de outro extremo da vida.

19 novembro 2008

Medir as palavras

Num país quase sem orçamento para a Cultura, num país em que os primeiros financiadores da arte são os profissionais da arte, num país em que se insulta a criação artística como subsidiodependente e se subsidiam com milhões os empresários que defendem as virtudes do mercado e que desconhecem o conceito de responsabilidade social, o Ministro da Cultura podia ter o bom gosto e o bom senso de não dizer que se tem desperdiçado dinheiro em Cultura.
Mas se calhar sou eu que sou esquisita...

16 novembro 2008

Eu, que não percebo nada disto, conto o que vi...

As aulas já tinham acabado. A professora estava na sala a corrigir trabalhos dos alunos. Parou, muito disponível, para falar com uma mãe (eu).
Ao lado da pilha dos livros de fichas que corrigia, estavam as fichas, já preparadas, para a próxima aula. Faltava recortar algum material para distribuir aos alunos. Aos 22 alunos. Na mesa em frente estavam os painéis quase prontos para as paredes da sala. Mais sílabas, que estarão sempre acessíveis aos olhos dos meninos.
A professora quer levar os alunos ao teatro este Natal. Já falou com a Câmara mas não conseguiu a carrinha - a que estava disponível não cumpre as normas de segurança. Tentou empresas privadas, mas percebeu que ficava muito caro para o bolso da maior parte dos pais. Falou com a Metro e só lhe cobram meio bilhete por aluno. Se o teatro não for acessível por metro, terá de falar com a empresa dos autocarros. Fiquei de ajudar na selecção do espectáculo. Como estou na associação de pais, acabamos também por conversar sobre as necessidades de acções de formação dos professores - vai começar a dos quadros electrónicos, mas era bom não esquecer a necessidade de uma actualização contínua em matemática e português.
Antes de me ir embora, avisa-me que vou encontrar mais um papel sobre o Magalhães na mochila da minha filha. Desabafa que tem perdido mais tempo do que julgava com isto; os campos de dados previstos não se adequam à diversidade da realidade. E, com um suspiro , vai dizendo que ainda nem olhou para as papeladas da avaliação; "não há tempo para tudo e os alunos estão primeiro".

E eu, que não percebi muito bem ainda o que se passa com a avaliação (os princípios da existência de avaliação e de avaliação pelos pares parecem-me razoáveis), fiquei com a certeza de que os professores estão - há muitos anos - a ser otários. Na tentativa de sobreviver a cada dia, preparando a cada dia o seu trabalho com os alunos, vão-se matando aos poucos. E, digo eu, no meio desespero apontam mal as baterias.

É normal que um professor prepare e dê aulas, corrija trabalhos, planeie actividades, faça formação, converse com encarregados de educação, e, até, avalie. É muito - pois é - é uma profissão muito exigente. E que exige muito respeito.
O que não é normal é que um professor perca tempo a tirar fotocópias, recortar e colar material, fazer telefonemas, pedir orçamentos, negociar contratos, inserir dados e tratar de vendas e papeladas. E também não é normal que um professor passe horas sentado a trabalhar em mobiliário desenhado para crianças. Ou que não tenha sequer um local para trabalhar. Ou para guardar o seu material de trabalho.

Suspender a avaliação é pouco, muito pouco. Os professores deviam suspender as suas actividades de auxiliares de acção educativa e funcionários de secretaria e ocupar os espaços da escola para conversar sobre educação e avaliarem-se e a todo o sistema, num exercício de democracia muito belo e que seria certamente catastrófico para os alunos, pais e país.

Situações dramáticas exigem acções dramáticas.

10 novembro 2008

se uma cidade, depois de saber o que sabe, dá um voto a um autarca...

Padre José Maia, Presidente da Fundação Filos, em entrevista ao Público.

a Câmara Municipal do Porto adoptou uma filosofia muito própria. Todas as câmaras têm um pelouro social. E o pelouro social intervém ao nível da rede social. No Porto, de facto, não há rede social. É o único concelho do país.

Em relação ao São João de Deus é uma estupefacção. Como é possível aquilo acontecer e não haver um movimento social?
[...]
A minha questão é o princípio. O problema de expulsar os pobres para a periferia. Se formos a ver, muitos dos actos de vandalismo que estão a acontecer resultam de situações explosivas. A área metropolitana é um terreno minado pelo desemprego, pelo tráfico das drogas, pela desestabilização familiar que é muita, por um número imenso de pessoas detidas, de crianças que têm de estar com as mães na cadeia e depois não têm quem as acompanhe na inserção do bairro de onde saíram. É uma zona minada pela pobreza. Enquanto não conseguirmos desminar a cidade...
[...]
Todos os indicadores negativos estão mais carregados no distrito do Porto: sida, associada à toxicodependência, tuberculose, violência doméstica...
O Porto está no ranking desagradável. Há aqui situações que partem de uma reivindicação política. O poder central tem descurado o Porto. Têm faltado actores políticos e económicos que de facto defendam o país. Tempos o caso do aeroporto. E outros. E depois tudo tem a ver com tudo.


O título do post também foi retirado da entrevista.

05 novembro 2008

vou dormir contente


Desafio para a próxima geração: eleger um ateu.
(eleger uma mulher não precisa de uma geração, pois não?)

03 novembro 2008

Teatro Nacional São João

O desencanto é tanto maior quanto sabemos que o TNSJ é a única grande instituição cultural do Porto; porque tem lastro e porque se abre e afirma no país e no mundo como um palco da cidade. A anunciada saída de quem a criou, nesta altura e por estas razões, é uma notícia assustadora numa cidade já morta de susto.

Ricardo Pais

citação I
Em países que estão ainda em vias de desenvolvimento cultural como nós, a next big thing é sempre aquilo que esquece o que ficou por fazer, e é por isso que eu embirro tanto com os clusters, com as indústrias criativas e com os chamados programadores modernos, porque estão sempre à procura da última novidade para fazer de conta que a gente vai ser como São Francisco.


citação II
Eu tinha feito a jura de não dizer um número sequer, porque sistematicamente são publicados números astronómicos: diz-se que há não sei quantos milhões de espectadores, mas o que há é festas em Bragança e em Serralves e DJings no [Centro Cultural] Vila Flor e na Casa da Música. Esses números não interessam. Os números que interessam significam fidelização de públicos a démarches artísticas


Sem tempo para escrever, e sem perceber os comentário bárbaros, direi que tenho saudades de um tempo em que podia discordar do Ricardo Pais porque se discutiam políticas culturais. Estamos a viver tempos bárbaros. O mais importante é mesmo o que une quem continuamente se recusa a viver neles.