28 junho 2010

memória

quem nos dera saber contar uma vida assim

Um voto de pesar pelo falecimento de José Saramago é também um voto de pesar pela nossa imensa perda.

Saramago ofereceu-nos a força mais pura da criação, reflectindo o mundo para nos devolver um outro, renovado e humano, nas suas limitações e deslumbramentos.

Nos livros e na vida, nas palavras, em suma, José Saramago confrontou-se e confrontou-nos com a tragédia de existir, com o amor a ditar-nos a vida, com as marcas que a História feita por ditadores minúsculos deixou em homens e mulheres aos quais a História nunca deu rosto ou tamanho. E essa façanha implicou também olhar deus de frente, encarar de frente o país e a sua mesquinhez, mas também a sua grandeza.

O que ele disse, mais ninguém escreveria.

E essa coragem deve também agora ser celebrada, para que os tiranetes sejam cada vez menos. Para que a tacanhez seja vencida em nome do espírito livre e de um país que seja mais do que uma organização económica e que não renegue o seu povo, a sua história, a sua cultura. Um país que, agora ainda mais, deverá fazer por demonstrar que mereceu esta obra de um só homem sobre muito mais que um povo só.

Porque Saramago que, soube quebrar todas as fronteiras, fronteiras de língua e de país pelo enorme reconhecimento internacional que teve, e fronteiras de linguagens e imaginários, torna-nos mais e mais acompanhados. Hoje são parte do que somos todos – e tantos que somos - o amor de Baltazar e Blimunda, uma península feita jangada, um país de morte suspensa, um deus à semelhança do homem.

Quem nos dera saber contar uma vida assim.


08 junho 2010

A vez dos intermitentes

Na semana passada, na Assembleia da República, foram aprovadas na generalidade as propostas relativas aos regimes laboral e social dos profissionais das artes do espectáculo e do audiovisual. Começa portanto agora uma nova oportunidade para garantir direitos básicos a estes profissionais. Na anterior legislatura o Governo do PS aprovou sozinho a Lei 4/2008, uma lei contestada por todos e de tal forma afastada da realidade que nunca foi aplicada. É imperativo que não se repita o erro.

Estes profissionais - criadores, técnicos, intérpretes das mais diversas disciplinas artísticas - não têm, na sua grande maioria, acesso a protecção na doença ou no desemprego ou sequer direito a férias. E não têm, no fim de uma carreira tão dura e exigente, acesso a pensões de reforma condignas. Trabalham projecto a projecto, espectáculo a espectáculo, filme a filme, telenovela a telenovela. Muitas vezes a recibo verde. Sem regras, sem protecção. Mas estão integrados em equipas, obedecem a uma hierarquia, têm local e horário de trabalho determinado pelo empregador. Têm também de ter um contrato.

Um contrato que tenha em conta a intermitência própria de grande parte da actividade: períodos de grande intensidade seguidos de períodos de pausa; um profissional, depois de meses de 12 horas de trabalho por dia em filmagens, fica sem trabalho durante o período essencial ao repouso, à formação e à procura de um novo trabalho. Com a actual lei estes trabalhadores e trabalhadoras nunca conseguem ter sequer um dia de férias pagas. E não têm acesso ao subsídio de desemprego entre um trabalho e o seguinte. Os contratos de trabalho terão também de ter em conta a especificidade da própria profissão: não esquecemos que para dar o espectáculo do fim-de-semana o pianista, como o bailarino, obedece à rotina de 8 horas de prática diárias ao longo de toda a semana. A lei tem ainda de reconhecer que um trabalhador pode ter simultaneamente diversos empregadores: como o actor que ensaia um espectáculo à tarde, está em cena à noite e faz dobragens de manhã. Mas existem também profissionais com actividade continuada e que têm direito a um contrato sem termo. Criar um regime que dê resposta aos intermitentes não pode nunca abrir a porta à perda de direitos destes trabalhadores e trabalhadoras.

Os projectos do Bloco de Esquerda – de protecção social, regime laboral, certificação profissional – dão resposta às necessidades concretas. Contratos a prazo sucessivos e sem limite para as actividades não contínuas, contratos sem termo para os postos de trabalho permanentes. Os projectos do BE são os únicos que garantem protecção da verdadeira intermitência com contagem intercalada dos prazos de garantia em situação de desemprego, a única forma de garantir que entre projectos, entre filmes, entre espectáculos, entre novelas, os profissionais têm acesso de facto ao subsídio de desemprego para o qual contribuem. E também são os únicos que prevêem contribuição sobre remunerações reais: descontar pelos vários contratos e receber prestações de acordo com os descontos efectuados. É isso que estes profissionais esperam: não uma esmola mas a possibilidade de contribuírem de forma justa para terem direitos justos também.

O BE apresentou ainda um projecto de lei sobre os bailarinos de bailado clássico e contemporâneo e que responde totalmente às reivindicações destes profissionais; o trabalho físico intenso, desde tenra idade, que o bailado exige só se compara ao dos atletas de alta competição. Mas não é acompanhado do respectivo estatuto. Uma injustiça que urge reparar.

Muito se tem falado do impacto económico da cultura. Agora falamos dos direitos e dignidade dos seus profissionais. Que a decência não nos permitacontinuar a perorar sobre a importância da arte, cultura, indústrias criativas e simultaneamente negar aos profissionais que tornam tudo isso possível os direitos mais básicos. Continuaremos o trabalho e a luta, esperando que desta vez saia da AR uma Lei consequente com as soluções justas e inadiáveis.


publicado no esquerda.net



03 junho 2010

Frota Liberdade

Declaração Política - Sessão Plenária da Assembleia da República, 2 de Junho de 2010


Na madrugada de 31 de Maio uma frota de ajuda humanitária, acompanhada por uma comitiva internacional, foi atacada em águas internacionais por um grupo armado que a tomou e assassinou vários dos seus elementos. Este grupo armado não é um bando de terroristas ou de piratas. É o exército de um país. E se a comunidade internacional não age já é cúmplice deste crime e dos que inevitavelmente se seguirão.

A Frota da Liberdade transportava 10 toneladas de ajuda humanitária para Gaza e cerca de 700 activistas pelos direitos humanos oriundos de 40 países, incluindo palestinianos e israelitas, representantes eleitos de diversos países e uma Prémio Nobel da Paz. Transportavam alimentos, cimento, brinquedos para a população de Gaza. E foram atacados em águas internacionais, com gás e tiros de metralhadora, pelo exército israelita, um dos exércitos mais poderosos do mundo.

Na base de tudo está a defesa ao cerco a Gaza que esta Frota procurava furar; um certo contraproducente e inaceitável. Israel mantém um bloqueio injusto e cruel à população de Gaza, mantendo um milhão e meio de pessoas, homens, mulheres e crianças, prisioneiros no seu próprio país e privados dos mais básicos bens e direitos. Israel impede a circulação de pessoas e proíbe entrada em Gaza de bens alimentares, medicamentos, cimento, brinquedos, instrumentos musicais, num inaceitável instrumento de punição colectiva de todo um povo. Quatro em cada cinco habitantes dependem da ajuda humanitária para sobreviver por causa do bloqueio imposto por Israel.

O ataque mortal de Israel à frota de barcos humanitários que iam em direcção a Gaza chocou o mundo. As Nações Unidas, a União Europeia e quase todos os governos e organizações multilaterais condenaram o ataque e pedem a Israel para acabar com o bloqueio e para lançar uma profunda investigação sobre o ataque à frota. Tristemente o Governo português nada mais fez do que lamentar. Enquanto o Parlamento Europeu foi claro nas sua crítica e nas suas exigências e Espanha, França e Brasil chamaram os embaixadores de Israel para consulta, Luís Amado repudiou, envergonhadamente, o sucedido e passou em frente.

O embaixador israelita em Portugal já comentou o sucedido: “preferimos vozes de condenação à apresentação de condolências”. Ou seja, Israel pratica e defende uma política de dispara primeiro e pergunta depois; não importa quantas vidas se perdem desde que sejam as vidas dos “outros”. Nada vale; leis internacionais, direitos humanos, vidas humanas. O Estado de Israel vive numa situação de excepção e impunidade inaceitável e crescente.

Com o ataque à frota liberdade, Israel subiu mais um patamar na provocação à comunidade internacional. Atacou um país membro da NATO e com quem mantinha relações diplomáticas; as embarcações são da Turquia. O estatuto de inimputabilidade de que o Estado de Israel goza há décadas só o poderia levar até aqui.

Este ataque revela ainda a estupidez de uma aliança – a NATO – que se mostra inútil e incapaz, e cúmplice da política externa de um dos seus membros – Israel - mesmo contra os outros membros da aliança.

A maior parte das pessoas em qualquer lugar ainda partilha o mesmo sonho: dois Estados livres e viáveis, Israel e Palestina, que possam viver em paz lado a lado. Mas o bloqueio, e a violência usada para defendê-lo, envenenam este sonho. O jornal de referência Israelita Ha’aretz afirma “Nós já não estamos a defender Israel. Nós estamos agora defender o bloqueio (a Gaza).”

É tempo de responsabilizar Israel pelas suas acções. É tempo de Israel respeitar o direito internacional e acabar com o bloqueio a Gaza. A comunidade internacional tem sido cúmplice do bloqueio a Gaza, cúmplice da tolerância para com as acções desproporcionadas, cúmplice da situação de excepção.

Não chega reiterar declarações de condenação ou muito menos de lamento. É preciso agir. Ontem um grupo de eurodeputados que visitou a Gaza reuniu-se em conferência de imprensa para exigir que a União Europeia suspenda o estatuto de associação com Israel, alegando a violação da cláusula de respeito pelos direitos humanos, e imponha sanções a Israel que acabem com a situação de impunidade e tornem consequente a exigência de respeito pelas leis internacionais e pelo fim do bloqueio a Gaza.

E é também esse o caminho que Portugal deve seguir. Como Estado soberano, nas suas relações bilaterais com Israel, e como membro de organizações internacionais; temos de ter uma posição clara de defesa do direitos internacional e dos direitos humanos, de sanção aos ataques israelitas, seja na União Europeia, na Nato ou nas Nações Unidas. É inaceitável que Portugal continue a ser cúmplice dos crimes de Israel e que o Governo português, entre todos os governos europeus, seja o mais reservado na condenação neste ataque à margem de todas as leis internacionais.