30 outubro 2010



tenho saudades da gargalhada do João Paulo a estalar nos claustros do Mosteiro e continuo à espera que ele diga "isto está uma merda" para irmos lanchar, voltar a ensaiar, mudar tudo, fazer de novo e nada disto ser verdade e ele estar aqui ao pé de nós como sempre.

que não podemos perder assim de repente e sem mais quem nos tornou a infância mais desafiadora com a loucura sã dos Amigos de Gaspar, quem gozou o Cavaquismo "vai no Batalha", quem mostrou que os manipuladores são intérpretes em contracena com as marionetas, quem nos provou que o nosso corpo é a nossa marioneta, quem recriou nas mais belas e terríveis imagens Shakespeare e Beckett, quem acabou espectáculos com fogo de artifício...

28 outubro 2010

O lugar da Cultura num orçamento que suspende a democracia

A hegemonia do pensamento que impõe um orçamento de austeridade para os mesmos de sempre, casa bem com o lugar que este mesmo orçamento reservou à Cultura. Afinal, o sentimento de inevitabilidade é tão mais forte quanto menores forem as alternativas de pensamento, quanto menor a pluralidade, as fontes de informação, os despertares de curiosidade, o universo de possibilidades que se abre à frente de cada um de nós.

Na proposta de Orçamento do Estado para 2010 não é só a curva de desinvestimento que se acentua no que toca ao Ministério da Cultura, com uma quebra de quase 15% em relação ao OE2010 e o orçamento mais baixo em valores absolutos dos últimos 12 anos. O que se acentua também é o apagamento dos poucos investimentos com repercussão no território e geradores da pluralidade de acesso à cultura.

As quebras mais significativas são no financiamento à criação artística, que cai 50%, e na rede de museus, com uma quebra de 30%. Ou seja, toda a rede que cobre o país e promove o contacto com a diversidade do nosso património e criação está posta em causa. Um recuo de mais de uma década.

E o recuo não fica por aqui. Intensifica-se. A única estrutura de criação e produção descentralizada tutelada pelo Estado desaparece: funde-se o Teatro Nacional São João, do Porto, na estrutura da OPART, juntamente com o Teatro Nacional D. Maria II. E cria-se um monstro administrativo e com poderes de determinação das linhas artísticas que controla os três teatros nacionais – incluindo o Teatro Nacional São Carlos - e a Companhia Nacional de Bailado.

Mas um dos passos mais significativos desta política talvez seja a extinção da Direcção Geral do Livro e das Bibliotecas; o organismo que tinha a responsabilidade de possibilitar a edição plural, para lá do que o mercado reclama para si, e a promoção da Rede Nacional de Bibliotecas. Integrar a DGLB na estrutura da Biblioteca Nacional, uma estrutura centrada num edifício e vocacionada para o património e não para a difusão, é um recuo de mais de 20 anos. A Rede de Bibliotecas Públicas foi o primeiro passo da democracia cultural; o conhecimento, o lazer e a arte na sua pluralidade ao alcance de todos e todas e um pouco por todo o país. Este OE explicitamente obscurece o essencial da democracia.

E não se julgue que tudo é falta de fundos e incompetência. Há propósito nestas opções. Caso contrário como se explicaria que em nada se ponha em causa os 40.000 euros de remuneração mensal auferidos pelo Conselho de Administração da Fundação Guimarães Capital da Cultura 2012, mais do triplo do que recebe o Conselho de Administração de qualquer dos teatros nacionais? Ou o que dizer do facto de a única dotação dentro do MC que aumenta ser a do Fundo de Fomento Cultural, um Fundo que pode ser usado com total discricionariedade pela tutela?

Que tempos negros, estes.

publicado no esquerda.net

15 outubro 2010

Nato para quê?

uma iniciativa da Cultra:
"Nos próximos dias 19 e 20 de Novembro Lisboa vai receber uma cimeira da NATO. Importante, sem dúvida, mais ainda, desde que está confirmada a visita do presidente dos EUA, Barack Obama, à capital portuguesa. Entretanto, e para lá das câmaras, dos holofotes e do tapete vermelho, para lá do impacte mediático, o que está em causa é um novo conceito estratégico de alargamento do espaço de actuação da Aliança Atlântica a todo o planeta.
É esta a situação perigosa que vai ser definida em Novembro. E é por causa dela que a CULTRA e a rede europeia Transform! organizam em conjunto um encontro a 16 e 17 de Outubro no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) uma série de conferências intitulada «NATO PARA QUÊ?». A iniciativa tem o apoio do International Coordinating Commitee No to War No to NATO (ICCNWNN).

Durante estes dois dias a história da Aliança Atlântica criada no pós-Guerra, a sua actuação e os seus palcos – do Irão ao Iraque, dos Balcãs à Palestina ao Afeganistão – serão debatidos por especialistas, portugueses e estrangeiros de diversas áreas: jornalistas, historiadores, deputados, sociólogos, activistas. Walter Baier, coordenador da rede europeia Transform! e Gilbert Achcar, escritor, activista e especialista em questões internacionais são algumas das presenças a registar.
Um dos pontos altos será, certamente, a presença e o testemunho de Mariam Rawi – é esse o seu nome «oficial» - militante da Associação Revolucionária das Mulheres Afegãs (RAWA). Esta voz do Afeganistão irá falar da sua experiência pessoal, da situação da população e das mulheres, em particular, antes e depois do regime talibã, no seu país, e do papel da NATO, na vida política local mas também no quotidiano popular daquele país árido e montanhoso: o Afeganistão, que, pelas razões mais duras, há vários anos continua a encher páginas de jornais e noticiários (onde, muitas vezes, se oculta o carácter agressivo e dominador da presença da NATO). Aliás, o encontro vai ter uma antecipação em Coimbra. No próximo dia 15, sexta-feira, Mariam Rawi irá ter um encontro com o público coimbrão às 18 horas, nas Galerias Santa Clara.
A política portuguesa, desde a Guerra Colonial ao contexto presente também vai ser tema de debate. Nesta série de debates mais geral. E urgente.
NATO: urgência em debater

Às 18 e 30 de sábado, dia 16, haverá, ainda, um momento cultural: Sylvie Rocha, João Meireles e Jorge Silva Melo, dos Artistas Unidos, irão ler textos de Fiama Hasse Pais Brandão, Boris Vian (numa tradução de Nuno Júdice), Jorge de Sena, Fernando Assis Pacheco, Harold Pinter e Paul Éluard (com tradução de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade)."

14 outubro 2010

Sobre a extinção do Serviço de Belas Artes da Gulbenkian, as responsabilidades do Estado e o Orçamento que aí vem

A declaração política do Bloco de Esquerda hoje na Assembleia da República:

O Serviço de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian é responsável pelo mais importante programa de bolsas e apoio à criação artística que temos no país. Em 2009 atribui financiou projectos no valor de 1,9 milhões de euros. Mais do dobro do financiamento distribuído pelo Ministério da Cultura nos apoios pontuais à criação artística. O anúncio do encerramento deste serviço deve por isso preocupar-nos a todos.

Há 4 anos foi extinto o Ballet Gulbenkian e todos sabemos o grave prejuízo que esta extinção significou para criadores e públicos. Durante anos o público português teve contacto regular com a dança contemporânea e os profissionais contaram com uma referência essencial de qualidade e continuidade. Hoje, a dança contemporânea, como a maior parte das expressões artísticas contemporâneas, está condenada ao gueto da invisibilidade e da instabilidade dos apoios circunstanciais. Desperdiçam-se assim os incríveis ganhos em formação de públicos e profissionais que o Ballet Gulbenkian representou.

Culpa certamente de um Ministério da Cultura e de um Governo inaptos e irresponsáveis que, em lugar de assumirem as suas responsabilidades, agravaram o subfinanciamento da dança e fragilizaram a única Companhia Nacional de Bailado, afogada na estrutura obtusa da OPART.

A reflexão sobre o que aconteceu há 4 anos com a extinção do Ballet Gulbenkian chama-nos a atenção para problemas que persistem e convoca especiais responsabilidades ao sermos confrontados com a decisão de encerramento do Serviço de Belas Artes.

A Fundação Calouste Gulbenkian ocupa histórica e meritoriamente um papel estratégico na estruturação cultural da nossa sociedade. Foi através da sua acção que o acesso à literatura e aos hábitos de leitura se generalizaram, que o acesso à produção contemporânea se democratizou e que se tornou possível o surgimento de uma rede artística sustentada e profissionalizada numa altura em que o Estado não cumpria, nem se propunha cumprir, qualquer papel de relevo. É legítimo dizer que não é possível imaginar o que seria o país sem a Gulbenkian.

A decisão com que agora somo confrontados é uma escolha legítima de uma fundação privada. Mas as consequências desta escolha devem ser discutidas publicamente e sem tabus.

A hecatombe que a rede artística nacional sofreu nos últimos dez anos torna hoje este sector, estratégico segundo o programa do governo, e o principal erro da governação de Sócrates, nas sempre efusivas palavras do primeiro-ministro, incapaz de qualquer resposta sustentada à crise.

Não podemos promover o ensino artístico de jovens como meio de qualificação e integração social, abrindo horizontes de possibilidades e vontade de criar a quem não sabia que podia, para depois lhe negar qualquer hipótese de uma carreira profissional. E negar-lhe até o direito a ser público consumidor de cultura. Há algo de profundamente errado num país que aplaude orquestras de jovens violinos e trata os violinistas como párias.

Devemos pois perguntar claramente e publicamente se estruturas centrais para a vida cultural do país como a orquestra e o coro Gulbenkian serão mantidas com uma política de 20, 30, 50 anos, ou deveremos antes esperar uma reavaliação de 3 em 3 anos de toda a sua estrutura e consequente extinção.

Mas devemos sobretudo questionar o Governo sobre as suas responsabilidades e sobre o Orçamento que nos espera. Por toda a Europa o clamor do sector artístico face à crise que enfrentamos é a que o slogan britânico tão bem expressa: cortem-nos, não nos matem.

Mas em Portugal os cortes matam há já vários anos; o desinvestimento crónico mata o sector cultural e o país. Mas é bom lembrar que mais de 2,5% do PIB em Portugal vem da Cultura, um valor vinte vezes superior ao do orçamento do Ministério. Num sector sempre esquecido pelos sucessivos governos, a não ser nas inaugurações com hora marcada para televisão ver, os agentes culturais multiplicam por vinte cada euro investido pelo Estado. Quantos sectores da nossa economia poderão dizer o mesmo?

Na Europa a riqueza gerada pelo sector cultural é superior à gerada pela indústria automóvel. E todos os estudos o comprovam: é na vida cultural activa da população que está a chave para o desenvolvimento – a qualificação.

Exige-se do Governo e do Ministério da Cultura uma resposta que não ignore a importância fulcral do serviço que a Gulbenkian agora pretende extinguir, iniciando imediatamente um processo negocial com a Fundação de forma a garantir que não se estará a pregar mais um prego no caixão em que se tornou a política cultural em Portugal.

Exige-se do Governo que o Orçamento do Estado para 2011 não persista no erro de ignorar a importância estratégica do investimento público em Cultura.

Os desafios que o sector enfrenta obrigam a uma consciência solidária e responsável perante a crise. Que estejamos todos à altura das nossas responsabilidades.