20 julho 2006

Apontamentos sobre Política Cultural


O discurso político reconhece genericamente a importância da promoção da Cultura para o desenvolvimento do país. Em todas as campanhas eleitorais, de âmbito nacional ou local, multiplicam-se as referências à Cultura e seus agentes. Ainda que sejam claras diferenças na forma de pensar Cultura, a política cultural está presente em todo o discurso político e tem reflexos na organização do Estado: todos os governos têm tido um Ministério da Cultura (desde o primeiro governo liderado por António Guterres) e um número cada vez maior de Câmaras Municipais tem Pelouro da Cultura.

Na verdade, não há uma definição de objectivos estratégicos para o país no campo da política cultural. Mas há preocupações que têm atravessado diferentes governos e que se sentem em muitas autarquias: preservação de património, ligação dos projectos culturais à escola, difusão e produção de eventos. O que não significa a existência de políticas estruturadas sobre estas matérias ou sequer coordenadas entre poder central e local. Na verdade a Cultura é porventura uma das áreas onde é mais nebulosa a partilha de responsabilidades entre governo e autarquias. E é certamente aquela onde o investimento financeiro mais se afasta dos objectivos enunciados. A importância dada à Cultura no discurso político não tem ainda reflexos nas opções orçamentais.

De uma forma geral Ministério da Cultura e autarquias debatem-se com orçamentos escassos e falta de articulação de políticas entre si e com outras áreas tangenciais (desde logo a Educação). Tenta-se assim preservar o património e os equipamentos existentes que mais impacto têm na população, multiplicam-se projectos pilotos nas escolas (que nunca passam à fase seguinte por falta de verbas), pede-se a estruturas privadas que quase sem meios preencham agendas culturais por todo o país, e organizam-se eventos que são ora catalisadores de apostas sempre futuras, ora festas populares, ora meras salas de visita do poder.

No que diz respeito ao teatro, pensar política cultural é pensar simultaneamente em criação contemporânea e divulgação de património, animação cultural e difusão, defesa da língua e internacionalização, formação e profissionalização, educação e consumo, etc..

Para quem cria e produz teatro há duas opções políticas particularmente relevantes nos últimos anos: a construção da rede de Teatros e Cine-Teatros e a consagração em decreto-lei do financiamento estatal à criação e produção artística de iniciativa não governamental.

Estas duas opções devem ser lidas como consequência da obrigação constitucional do Estado de possibilitar o acesso de todos os cidadãos à criação artística. Com a rede de Teatros e Cine-Teatros garante-se a existência de equipamentos para apresentação de espectáculos em todo o território, com o financiamento à criação e produção de iniciativa não governamental garante-se a existência de produção artística diversificada (tanto estetica como territorialmente). Pelo menos parece ser esse o objectivo. No entanto a rede de Teatros e Cine-Teatros não está ainda a operar como se esperaria e muitos dos equipamentos debatem-se com enormes problemas orçamentais. Depois do investimento do poder central nos edifícios falta perceber que investimento estão dispostas a fazer as autarquias no seu funcionamento e que obrigações terá ainda o Ministério da Cultura. Por outro lado também o modelo usado para financiamento à criação e produção artística de iniciativa não governamental está longe de ser consensual. Desde logo, e mais uma vez, porque o orçamento disponível é manifestamente insuficiente para os objectivos a que se propõe. Mas também porque não são claras as fronteiras entre o financiamento a projectos artísticos e a projectos de difusão ou mesmo de animação cultural.

No teatro, como noutras artes do espectáculo, as equipas de criação e produção estão implicadas a todo o tempo em diferentes frentes da política cultural. Tanto património como criação contemporânea são levadas ao público pela produção de espectáculos e os agentes de criação são também agentes de difusão, já que estão sempre em causa apresentações ao vivo. O Ministério da Cultura tenta um equilíbrio entre divulgação de património e criação contemporânea tanto através da lei orgânica dos teatros nacionais como dos critérios para atribuição de financiamento a estruturas privadas. No campo da difusão conta com a rede de Teatros e Cine-Teatros e tem uma política de atribuição de financiamentos a privados que alterna a valorização da qualidade artística com a valorização da capacidade de intervenção junto de públicos normalmente distantes da produção artística. Quanto às autarquias interessa geralmente muito mais o trabalho de difusão do que a criação artística propriamente dita. Há mesmo muitos casos em que há uma clara confusão entre difusão da criação artística e animação cultural.

No que diz respeito à internacionalização o teatro tem sido vítima de um equívoco generalizado que prejudica a implementação de políticas nesta área. Considera-se sempre que a Língua é uma barreira à internacionalização do teatro. Estranhamente não se ouve falar do teatro como meio de defesa e projecção da língua portuguesa. Assim, o teatro pode por vezes viabilizar alguns projectos de internacionalização aproveitando políticas pensadas para outras áreas (dança e artes visuais, ou relações com CPLP e comunidades emigrantes) mas não tem qualquer medida específica ou contacto directo com política para a Língua.

Nos campos da formação e profissionalização não há medidas de política cultural propriamente dita. É o Ministério da Educação que tutela a formação nas áreas artísticas e não existe estatuto ou certificação para os profissionais das artes do espectáculo. O vazio mantém-se quando se fala de ligação entre criação artística e escola ou da promoção do consumo de teatro. Nada existe sobre estas matérias, exceptuando projectos isolados quase sempre da responsabilidade das autarquias. Foi recentemente anunciado pelo Ministério da Cultura que estão a ser desenvolvidas parcerias com outros Ministérios, nomeadamente nas áreas da Educação e do Turismo, que vão permitir intervir nestas áreas.

Nos últimos anos a forma de discutir as políticas culturais para a arte tem sofrido alterações. Há uma maior percepção por parte do público da importância da Arte (ainda que não encontre a devida correspondência no consumo de bens culturais), há muito mais profissionais da arte e, recentemente, no campo das artes do espectáculo, surgiram mesmo associações (como a PLATEIA - Associação de Profissionais das Artes Cénicas e a REDE - Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea) que assumem o duplo papel de contestação ao poder político e de construção de pensamento estruturado sobre políticas culturais. Não podemos ainda constatar alterações significativas de política cultural, mas parece inevitável que este novo panorama venha a ter consequências políticas importantes.

A distância entre o discurso político e a prática é ainda grande. É verdade que já se fala de Cultura como factor importante de desenvolvimento económico e social, mas faltam medidas que concretizem o discurso. Aguardam-se ainda políticas culturais estruturantes e de longo prazo que tornem arte e cultura presentes no quotidiano da população. E falta um financiamento sério das políticas culturais, que assuma o investimento em Cultura como tão essencial ao país como o investimento em Educação, Comunicações ou Tecnologia.

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texto publicado na Revista Vinte e Um Por Vinte e Um da ESAP (2006) n.º1 "Onde está o teatro?", comissariada por Jorge Louraço Figueira.

Legislação: omissões e flutuações


A criação artística não precisa de enquadramento legal. Seria assustador conceber o contrário. Precisam sim de enquadramento legal os processos produtivos ligados à criação. E é por isso que é nas artes do espectáculo, logo também no teatro, que mais se sente a omissão e inconstância que infelizmente caracterizam a intervenção dos legisladores portugueses nesta área.

As artes do espectáculo têm processos produtivos particularmente complexos e dispendiosos. Requerem o trabalho simultâneo e num mesmo espaço de diferentes profissionais durante a criação e novamente em cada contacto do público com a criação. E requerem a presença simultânea da equipa e do público para poderem ser usufruídas. É fácil perceber que tudo isto levanta problemas de ordem diversa que é necessário regular: relações de trabalho, formas de financiamento, características dos espaços, etc..

A primeira grande omissão legislativa é por isso um estatuto para os profissionais das artes do espectáculo. Sem estatuto nem certificação profissional está em causa a dignidade do exercício da profissão, a tranquilidade nas relações laborais e o bom exercício da profissão.
As consequências para os profissionais das artes do espectáculo são catastróficas e passam pelo não reconhecimento de um grande número de profissões, regimes de segurança social impossíveis de adaptar à realidade da profissão e contratos de trabalho que atentam contra os mais elementares direitos reconhecidos à generalidade dos trabalhadores.
Para os contribuintes fica a pergunta de como saber se o investimento feito em artes do espectáculo é eficaz quando não existe qualquer mecanismo que distinga o exercício profissional do exercício amador da actividade.
E o espectador não poderá nunca sentir-se seguro numa sala de espectáculos quando não há nenhum tipo de certificação para os profissionais encarregues da segurança do espaço e do equipamento.

Naturalmente existe alguma legislação, mas é de tal forma desadequada à realidade que tem uma utilidade e aplicação muito reduzidas.
Nas instituições com quadros de pessoal maiores, quase todas instituições do Estado, existem contratos de trabalho negociados especificamente por essa instituição e que suprem as omissões remetendo para uma lei geral, que muito dificilmente pode realmente suprimi-las. Pense-se por exemplo na difícil tarefa de conciliar os ritmos e calendários próprios das artes do espectáculo com o direito dos profissionais ao descanso e conciliação da vida familiar. O bom funcionamento das instituições e dos direitos dos trabalhadores só podem ser defendidos com legislação específica.
Nas estruturas de produção mais pequenas reina a prestação de serviços. Profissionais a recibo verde, sujeitos simultaneamente à intermitência da profissão e a pagar mensalmente um quarto do que se julga ser a sua remuneração mensal para a segurança social. Sem direito a baixa médica (nesse caso o pagamento mensal terá de ir além dos 25%) e sem direito a fundo de desemprego (independentemente da percentagem do suposto salário que estejam dispostos a pagar). E esta é a situação da maior parte dos profissionais.
Profissionais de quadro ou prestadores de serviços, uns e outros, debatem-se ainda com o elenco de profissões que o Estado reconhece. É complicado o simples acto de declarar início de actividade num balcão das finanças que apresenta uma longa lista de profissões que, tantos anos passados sem qualquer reformulação, não tem quaisquer ligações com a realidade.

A área em que tem sido produzida legislação de forma mais estável e com relativa proximidade à realidade é a que diz respeito à apresentação pública dos espectáculos. Legislação sobre direitos de autor, classificação etária e licenciamento de salas. No entanto esta legislação tem sempre uma eficácia reduzida face à inexistência de estatuto e certificação profissionais adequados. Protege-se os direitos de autores, tradutores, encenadores, músicos e cenógrafos, mas esquece-se que é também autoria o desenho de luz ou de som. Estabelecem-se regras de segurança para as salas de espectáculos mas não há qualquer exigência sobre o pessoal responsável pela montagem e equipamento técnico (podemos ter saídas de emergência, mas nenhuma garantia sobre a segurança do equipamento utilizado). Mesmo os campos onde existe legislação são inevitavelmente assombrados pelas enormes omissões.

A área de legislação mais visível é a do financiamento da criação artística profissional de iniciativa não governamental. Visível, acima de tudo, por ser alvo permanente de alterações e de contestação.
Todos os executivos têm criado modelos próprios rejeitando os anteriores e os criadores e produtores têm contestado todos os modelos. Neste momento está em vigor a legislação produzida durante o executivo liderado por Durão Barroso, mas está em curso o processo de criação de uma nova legislação que deverá ser publicada ainda este ano.
O Ministério da Cultura tutela o Instituto das Artes (IA) que é responsável pelo financiamento da criação e produção artística de iniciativa não governamental (o financiamento dos teatros ou museus nacionais é completamente independente do IA). O IA tem uma lei orgânica que prevê a dinamização e financiamento directo de actividade nas áreas da internacionalização, difusão e formação. No que respeita à criação e produção o financiamento é feito através de concursos e em articulação com as Delegações Regionais de Cultura.
As áreas de intervenção directa do IA, internacionalização, difusão e formação, não tiveram - desde a publicação da lei orgânica - um real impacto por falta de verbas. Ou seja, a legislação não tem qualquer eficácia porque não foi acompanhada da necessária dotação orçamental. Isto é sobretudo verdade para as artes do espectáculo, já que no campo das artes visuais a presença portuguesa em feiras internacionais parece enquadrar-se no papel que o legislador conferiu ao IA em matéria de internacionalização. Nas áreas da formação e difusão não há qualquer indicação do que seria a concretização da legislação.
No que diz respeito à criação e produção artística de iniciativa não governamental, a legislação prevê dois de concurso através do qual as estruturas e criadores podem ter acesso a financiamento estatal: um concurso a actividade sustentada (projectos a dois ou quatro anos) e um concurso a actividade pontual (projectos a desenvolver no período máximo de um ano). Ambos os concursos são abertos tanto a estruturas de criação (companhias de teatro, por exemplo) como de difusão (festivais e salas de espectáculos). Estes concursos decorrem em Portugal Continental (o financiamento nos Açores e na Madeira é independente destes processos) e estão subdivididos por área artística e região. Estão previstas candidaturas nas áreas de música, teatro, dança e transdisciplinares/pluridisciplinares, e ainda artes visuais no caso dos concursos pontuais (o cinema e multimédia não são áreas de intervenção do IA tendo um instituto próprio: o ICAM). As regiões são: Norte, Centro, Alentejo, Algarve e Lisboa e Vale do Tejo. Uma alteração recente, já do executivo em funções, criou as grandes áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto e transformou os júris regionais em júris nacionais (alterações apenas para os concursos pontuais).
O processo de concurso inicia-se com a publicação de um anúncio de abertura que desde logo informa sobre os montantes de financiamento disponíveis para cada área artística e para cada região, bem como os nomes dos elementos dos júris que vão analisar as candidaturas. Entregues as candidaturas, os júris decidem que projectos apoiar segundo uma listagem de critérios que pretendem aferir da qualidade artística e da eficácia social de cada uma das propostas. Cabe ao director do IA homologar as decisões do júri.
Os concursos sustentados são para estruturas que existam há pelo menos 10 anos ou que sejam dirigidas por profissionais com mais de cinco anos de experiência. As estruturas financiadas através deste concurso são avaliadas por comissões regionais de cujo parecer depende a renegociação do contrato de financiamento em cada ano, e mesmo a renovação por dois ou quatro anos findo o prazo inicialmente previsto no concurso. Ou seja, neste momento a legislação não prevê que uma estrutura com financiamento sustentado volte a entrar em qualquer processo de concurso; tudo se passa por negociação directa com o IA e a Delegação Regional da sua área (excepto para estruturas de Lisboa e Vale do Tejo para quem o IA é interlocutor único). Os concursos pontuais são para estruturas ou criadores individuais, abrindo novo concurso todos os anos. Refira-se no entanto que, por falta de dotação orçamental, não existiu concurso pontual para o ano de 2005.
Tanto para financiamento sustentado como financiamento pontual considera-se sempre o exercício profissional da actividade, o que não é nunca possível de comprovar já que não existe certificação profissional.
Neste momento está em preparação nova legislação sobre esta matéria, pelo que é de acreditar que não se produzirão todas as consequências da actual legislação, nomeadamente no que diz respeito aos concursos para apoio sustentado. Nesta matéria o Estado tem alternado sistematicamente a aplicação de uma nova legislação com a aplicação de medidas transitórias e logo uma nova legislação. E assim tudo o que acaba de ser escrito está condenado a estar desactualizado no dia seguinte. Se a constante reformulação torna complicado descrever o processo, pense-se no que faz à gestão de qualquer estrutura de criação ou produção.

A dignificação do exercício da profissão no campo das artes do espectáculo e o acesso da população à criação artística, bem como a estabilidade das relações entre Estado e criadores, reclamam a construção de um edifício legislativo adaptado à realidade, estável e que pense de forma integrada todas as questões do sector. O caminho a percorrer adivinha-se longo.
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texto publicado na Revista Vinte e Um Por Vinte e Um da ESAP (2006) n.º1 "Onde está o teatro?", comissariada por Jorge Louraço Figueira.