25 novembro 2006

da arca das papeladas

Como é bom ser enfant terrible num país arrumadinho e palerminh

Vivemos num estranho mundo onde todos os diagnósticos do mal são feitos sem que se trilhe qualquer caminho de mudança. Ficamos todos muito chocados com os estudos sobre a pobreza, a violência, a desigualdade, a falta de formação, os baixos índices de fruição cultural, e todos os outros índices da nossa infelicidade quotidiana. Ficamos chocados, depois encolhemos os ombros e tentamos sobreviver neste nosso modelo de vida comum aparentemente inquestionável. E vamos arrastando a nossa tristeza até ao dia em que nos deixamos de sentir incomodados. E nos tornamos menos gente.


Escrevia Ibsen em 1882: “É a ignorância, é a pobreza, são as terríveis condições de vida que fazem a obra do Diabo. Numa casa que não é arejada e limpa todos os dias as pessoas perdem em dois ou três anos a capacidade de pensar ou agir de forma moral. A falta de oxigénio enfraquece a consciência.” E eu hoje sinto-me obrigada a concluir sobre o meu país, como o “Inimigo do Povo” de Ibsen concluía sobre a sua cidade, “deve haver uma grande falta de oxigénio em muitas casas desta cidade”, deste país. Deixámo-nos convencer da impotência das nossas acções. Deixamo-nos apodrecer e fingimos acreditar que um dia a salvação chegará. Desistimos de olhar a linha do horizonte.


Temos de agir contra a inevitabilidade. Temos de ser exigentes e responsáveis. Para connosco e para com os outros. Hoje e para o futuro. Temos de reivindicar o direito à nossa felicidade individual e colectiva e encontrar activamente os mecanismos que a podem construir.


Portugal é em muitos aspectos um país assustador. As desigualdades sociais agravam-se, a cultura e o ambiente são temas esquecidos e ninguém sabe realmente que valores defendemos na Europa e no Mundo. As nossas instituições parecem ter esquecido os fins para que foram criadas e transformaram-se num fim em si mesmo. O discurso político abandonou conteúdos e transformou-se em mera retórica formal. E o que é realmente assustador é a convicção generalizada de que tudo isto é normal. E inevitável, claro!


Mas se olharmos com atenção à nossa volta, percebemos que os caminhos são vários e que no nosso triste país de últimos lugares nos rankings de desenvolvimento e justiça social há também inúmeros exemplos de sucesso na luta contra a inevitabilidade. Porque há quem teimosamente lute contra o marasmo.


É nos gestos quotidianos que se constrói a relação com os outros e com o mundo. Precisamos de uma cultura de competência, responsabilidade e solidariedade. Não podemos ser cúmplices da degradação da nossa vida colectiva.


Não podemos ser cúmplices da pobreza, da injustiça, da fraude e da estupidez.


Não podemos baixar os braços perante a miséria e sofrimento de tantos de nós que não têm as mínimas condições de vida.


Não podemos nunca fechar os olhos à violência sobre os mais fracos.


Não podemos achar normal que alguém que nasceu em Portugal e que aqui vive não tenha o direito a ser português, ou que existam cidadãos de segunda a quem exigimos impostos mas não damos voz nas decisões sobre a sua aplicação.


Não podemos deixar
de nos revoltar contra a fraude diária da fuga aos impostos e contra a incompetência de quem esbanja recursos que são de todos.<


Não podemos compactuar na Europa e no Mundo com um modelo de desenvolvimento em que a qualidade de vida de poucos assenta no sofrimento de muitos.


Não podemos assistir passivos à irresponsabilidade ambiental do nosso modelo de desenvolvimento.


Não podemos continuar a rir da nossa própria boçalidade, afogados numa cultura televisiva massificada e massificante que tem de ser desmascarada na sua violência, racismo, sexismo e conformismo.


Não podemos continuar a cavar o terrível fosso que separa quem tem acesso a informação de quem não tem, negando o poder de decisão à maioria da população e transformando a democracia numa palavra vã. Temos de denunciar activamente a substituição da verdadeira informação pelo comentário político meramente formal e exigir um discurso substantivo sobre a nossa vida comum.


É preciso que os bons exemplos de luta contra a pobreza e a exclusão , os bons exemplos de formação e de afirmação cultural, deixem de ser as excepções curiosas dos discursos do dia mundial de qualquer coisa. Temos de ser capazes da criatividade e coragem dos protagonistas destes exemplos na definição das estratégias para o desenvolvimento do nosso país. Desenvolvimento económico, social, cultural. Um desenvolvimento em igualdade e liberdade, num país com uma identidade cultural forte e plural.


Interrogada sobre como encontrar modelos de desenvolvimento justos e sustentáveis, Maria de Lurdes Pintasilgo respondia numa entrevista à televisão, há já alguns anos, que os modelos já existiam. Economistas, sociólogos, cientistas, artistas, apresentaram já inúmeras soluções para os problemas que nos habituámos a considerar insolúveis. É preciso simplesmente resgatar para a prática essas conquistas.


Habituámo-nos a considerar como possível apenas o que já existe, o que já foi feito. Como se toda a nossa a História e Cultura não fossem construídas da ousadia de novas práticas e ideias. O caminho perigoso não é o que põe em causa o que já conhecemos. Perigoso é persistir na caminhada para o abismo.


A inevitabilidade não existe. É construída a cada dia em que abdicamos de nos sentir incomodados. Não há sistemas únicos nem chegámos ao fim da História. Não podemos nunca abdicar do direito e do dever de construir o nosso percurso individual e colectivo.



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escrito há um ano para o comício no Porto da pré-campanhã de Francisco Louçã à Presidência.

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