O que têm de especial os profissionais do espectáculo e do audiovisual?
Porque precisam de legislação específica sobre segurança social?
Tem sentido falar de certificação em áreas criativas e artísticas?
O que tem tudo isto que ver com o financiamento da cultura?
Aparentemente não há resposta óbvia a nenhuma destas questões. Hoje diz-se que a fluidez das relações laborais tradicionais nestes meios estão a ser aplicadas a todas as outras áreas. Querer agora uma regulamentação é andar para trás. Será?
Quando duas pessoas se juntam para criar uma obra de arte precisam de alguma legislação que regule essa actividade? Claro que não. Poderá a arte ou a capacidade criativa depender de regulamentação? Claro que não. Nunca!
Mas e se essas duas pessoas contratarem mais três e definirem a forma como essas três devem trabalhar, não partilhando com elas a gestão do trabalho em causa? Não deve a relação entre estes dois gestores e os seus três colaboradores ser regulada? Claro que sim!
Na criação artística muitas vezes o laço mais forte é a cumplicidade. E muitas vezes não é fácil perceber em cada momento quem está na posição dos dois gestores ou dos três colaboradores. Mas as relações profissionais na produção de espectáculos e de audiovisual existem muito para lá do acto criativo.
O critério para aferir da existência de uma relação laboral hierárquica que deve ser regulamentada é, na verdade, simples: quem não partilha a gestão da produção, por muito que partilhe as opções artísticas da produção, está a trabalhar para outrém. E quando falamos de trabalho desenvolvido necessariamente em equipa - como acontece nos ensaios, montagem e apresentação de espectáculos e nas filmagens e processo produtivo do audiovisual (cinema, televisão) - os locais e horários de trabalho não podem ser definidos por cada trabalhado. São impostos por quem tem o poder e responsabilidade hierárquica para o fazer: o empregador.
O que acontece hoje em Portugal é que, com crescimento das indústrias cultural e de entretenimento, as tradicionais relações informais da cumplicidade criativa passaram para relações laborais no seio de empresas face às quais o trabalhador está completamente desprotegido.
A legislação que existia era tão desactualizada que se tornou inaplicável. Uma legislação feita à medida de espectáculos de casino e teatro de variedades (hoje sem grande expressão no todo da produção de espectáculos e audiovisual) que regula a actividade dos contra-regras mas desconhece a existência de sonoplastas (um exemplo dos muitos da sua desactualização). mais aqui
A legislação publicada este ano sobre o regime de contratos tenta criar alguma "ordem" na confusão entre o acto criativo e as relações laborais que por causa dele se estabelecem. Mas é tímida e perigosa. Ao excluir deliberadamente os campos onde a relação laboral é em regra mais nítida - profissões ditas técnicas e indústria audiovisual - falha redondamente. mais aqui
Querer regulamentação específica não significa querer alterar a substância das relações laborais; significa apenas o desejo de ter relações transparentes e livres de chantagem. O exercício das profissões do espectáculo e do audiovisual continuará fluído, mas os profissionais terão dignidade no exercício da sua profissão.
A multiplicidade de empregadores, sucessiva e/ou simultânea, é uma das marcas do exercício da sua profissão. Assim como a intermitência. Não se espera que os trabalhadores das artes do espectáculo ou do audiovisual tenham mais direitos do que os outros. Apenas que tenham os mesmos.
A especificidade de uma profissão em que o normal desenvolvimento profissional pressupõe multiplicidade de empregadores e intermitência, e simultaneamente trabalho em equipa, exige, além de um regime específico de contratos de trabalho, um regime específico de segurança social. Para que seja possível que estes trabalhadores tenham os mesmos direitos e deveres que todos os outros.
É ainda importante reconhecer que estes trabalhadores têm competências técnicas específicas, adquiridas em escolas especializadas e/ou por experiência profissional. A capacidade e/ou vontade de criar não é certificável. Mas as competências específicas são. E devem ser.
A não certificação (ou a sua não obrigatoriedade) permite a eternização dos estágios não/mal remunerados, a insegurança das salas sem directores técnicos qualificados, a criação de equívocos (raramente ingénua) sobre o profissionalismo das equipas... É claro que um objecto artístico, tanto na área do espectáculo como do audiovisual, pode exigir a participação de não profissionias. E pode mesmo ser da autoria de não profissionais.
A certificação não é uma limitação. É, mais uma vez, um instrumento de transparência numa área em que competências técnico-criativas servem as cada vez mais importantes indústrias da cultura e do entretenimento.
De tudo o que se expôs pode parecer que a regulamentação do exercício profissional do espectáculo e do audiovisual é sentida como essencial e urgente por todos os profissionais. Mas não é assim. Ou melhor, não é bem assim.
Todos os profissionais sentem a necessidade da regulamentação e da certificação da actividade, mas muitos temem-na. E porquê? Porque a criação e produção cultural em Portugal é, em muitos casos, de tal forma subfinanciada que só acontece porque há desregulamentação.
Os profissionais hipotecam quotidianamente o seu presente profissional e o seu futuro pessoal para que seja possível exercerem a actividade. Muitos sabem que as frágeis estruturas em que trabalham e/ou que dirigem se tiverem de respeitar os direitos dos trabalhadores serão pura e simplesmente obrigadas a cessar a actividade.
Não será difícil encontrar, por exemplo, um actor que anseia por uma regulamentação que ponha fim à sua exploração pela grande produtora em que trabalha, ou mesmo tempo que a teme por ela poder tornar impossível a actividade da pequena estrutura de criação que dirige. Ou técnico um freelancer que sobrevive mês a mês com um salário ridículo porque não paga a segurança social a que é obrigado enquanto trabalhador independente e a quem a mudança assusta; se tiver um contrato de trabalho em que o valor ilíquido for o mesmo, a retenção na fonte impede-o deste expediente ilegal e perigoso mas indespensável à sobrevivência quotidiana.
Os profissionais que trabalham para grandes estruturas sentem mais a necessidade de regulamentação profissional, do que os que trabalham para estruturas pequenas e sentem como mais urgente a questão do financiamento. Também é natural que em Lisboa - onde se concentra a indústria audiovisual e grande parte do financiamento do Estado - a generalidade dos profissionais esteja mais atento às condições do exercício da profissão do que às do financiamento das artes e que no resto do país a situação seja a inversa.
A solução não é com certeza "empatar" a regulamentação do exercício da profissão até existir uma situação de financiamento às artes minimamente equilibrada. O que é necessário é compreender o que está em causa e alimentar as duas lutas. O que exige clareza de posições e solidariedade entre profissionais e regiões.
Escrito a posteriori com base na conversa do dia 1.
Porque precisam de legislação específica sobre segurança social?
Tem sentido falar de certificação em áreas criativas e artísticas?
O que tem tudo isto que ver com o financiamento da cultura?
Aparentemente não há resposta óbvia a nenhuma destas questões. Hoje diz-se que a fluidez das relações laborais tradicionais nestes meios estão a ser aplicadas a todas as outras áreas. Querer agora uma regulamentação é andar para trás. Será?
Quando duas pessoas se juntam para criar uma obra de arte precisam de alguma legislação que regule essa actividade? Claro que não. Poderá a arte ou a capacidade criativa depender de regulamentação? Claro que não. Nunca!
Mas e se essas duas pessoas contratarem mais três e definirem a forma como essas três devem trabalhar, não partilhando com elas a gestão do trabalho em causa? Não deve a relação entre estes dois gestores e os seus três colaboradores ser regulada? Claro que sim!
Na criação artística muitas vezes o laço mais forte é a cumplicidade. E muitas vezes não é fácil perceber em cada momento quem está na posição dos dois gestores ou dos três colaboradores. Mas as relações profissionais na produção de espectáculos e de audiovisual existem muito para lá do acto criativo.
O critério para aferir da existência de uma relação laboral hierárquica que deve ser regulamentada é, na verdade, simples: quem não partilha a gestão da produção, por muito que partilhe as opções artísticas da produção, está a trabalhar para outrém. E quando falamos de trabalho desenvolvido necessariamente em equipa - como acontece nos ensaios, montagem e apresentação de espectáculos e nas filmagens e processo produtivo do audiovisual (cinema, televisão) - os locais e horários de trabalho não podem ser definidos por cada trabalhado. São impostos por quem tem o poder e responsabilidade hierárquica para o fazer: o empregador.
O que acontece hoje em Portugal é que, com crescimento das indústrias cultural e de entretenimento, as tradicionais relações informais da cumplicidade criativa passaram para relações laborais no seio de empresas face às quais o trabalhador está completamente desprotegido.
A legislação que existia era tão desactualizada que se tornou inaplicável. Uma legislação feita à medida de espectáculos de casino e teatro de variedades (hoje sem grande expressão no todo da produção de espectáculos e audiovisual) que regula a actividade dos contra-regras mas desconhece a existência de sonoplastas (um exemplo dos muitos da sua desactualização). mais aqui
A legislação publicada este ano sobre o regime de contratos tenta criar alguma "ordem" na confusão entre o acto criativo e as relações laborais que por causa dele se estabelecem. Mas é tímida e perigosa. Ao excluir deliberadamente os campos onde a relação laboral é em regra mais nítida - profissões ditas técnicas e indústria audiovisual - falha redondamente. mais aqui
Querer regulamentação específica não significa querer alterar a substância das relações laborais; significa apenas o desejo de ter relações transparentes e livres de chantagem. O exercício das profissões do espectáculo e do audiovisual continuará fluído, mas os profissionais terão dignidade no exercício da sua profissão.
A multiplicidade de empregadores, sucessiva e/ou simultânea, é uma das marcas do exercício da sua profissão. Assim como a intermitência. Não se espera que os trabalhadores das artes do espectáculo ou do audiovisual tenham mais direitos do que os outros. Apenas que tenham os mesmos.
A especificidade de uma profissão em que o normal desenvolvimento profissional pressupõe multiplicidade de empregadores e intermitência, e simultaneamente trabalho em equipa, exige, além de um regime específico de contratos de trabalho, um regime específico de segurança social. Para que seja possível que estes trabalhadores tenham os mesmos direitos e deveres que todos os outros.
É ainda importante reconhecer que estes trabalhadores têm competências técnicas específicas, adquiridas em escolas especializadas e/ou por experiência profissional. A capacidade e/ou vontade de criar não é certificável. Mas as competências específicas são. E devem ser.
A não certificação (ou a sua não obrigatoriedade) permite a eternização dos estágios não/mal remunerados, a insegurança das salas sem directores técnicos qualificados, a criação de equívocos (raramente ingénua) sobre o profissionalismo das equipas... É claro que um objecto artístico, tanto na área do espectáculo como do audiovisual, pode exigir a participação de não profissionias. E pode mesmo ser da autoria de não profissionais.
A certificação não é uma limitação. É, mais uma vez, um instrumento de transparência numa área em que competências técnico-criativas servem as cada vez mais importantes indústrias da cultura e do entretenimento.
De tudo o que se expôs pode parecer que a regulamentação do exercício profissional do espectáculo e do audiovisual é sentida como essencial e urgente por todos os profissionais. Mas não é assim. Ou melhor, não é bem assim.
Todos os profissionais sentem a necessidade da regulamentação e da certificação da actividade, mas muitos temem-na. E porquê? Porque a criação e produção cultural em Portugal é, em muitos casos, de tal forma subfinanciada que só acontece porque há desregulamentação.
Os profissionais hipotecam quotidianamente o seu presente profissional e o seu futuro pessoal para que seja possível exercerem a actividade. Muitos sabem que as frágeis estruturas em que trabalham e/ou que dirigem se tiverem de respeitar os direitos dos trabalhadores serão pura e simplesmente obrigadas a cessar a actividade.
Não será difícil encontrar, por exemplo, um actor que anseia por uma regulamentação que ponha fim à sua exploração pela grande produtora em que trabalha, ou mesmo tempo que a teme por ela poder tornar impossível a actividade da pequena estrutura de criação que dirige. Ou técnico um freelancer que sobrevive mês a mês com um salário ridículo porque não paga a segurança social a que é obrigado enquanto trabalhador independente e a quem a mudança assusta; se tiver um contrato de trabalho em que o valor ilíquido for o mesmo, a retenção na fonte impede-o deste expediente ilegal e perigoso mas indespensável à sobrevivência quotidiana.
Os profissionais que trabalham para grandes estruturas sentem mais a necessidade de regulamentação profissional, do que os que trabalham para estruturas pequenas e sentem como mais urgente a questão do financiamento. Também é natural que em Lisboa - onde se concentra a indústria audiovisual e grande parte do financiamento do Estado - a generalidade dos profissionais esteja mais atento às condições do exercício da profissão do que às do financiamento das artes e que no resto do país a situação seja a inversa.
A solução não é com certeza "empatar" a regulamentação do exercício da profissão até existir uma situação de financiamento às artes minimamente equilibrada. O que é necessário é compreender o que está em causa e alimentar as duas lutas. O que exige clareza de posições e solidariedade entre profissionais e regiões.
Escrito a posteriori com base na conversa do dia 1.
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