08 setembro 2010

Cultura: mais ou menos para todos

Quando olhamos o mapa da vida cultural do país chegamos à conclusão de que vivemos num imenso deserto. Em mais de 90% dos municípios, e segundo os números oficiais, a ratio de pessoas que fruíram de espectáculos ao vivo, de cinema ou de museus não vai além dos 0,3 por habitante. Ou seja, por cada pessoa que foi ao concerto do “querido mês de Agosto”, ver o blockbuster do momento ou visitar ao monumento da terra uma única vez no ano, duas não viram absolutamente nada. Se pensarmos que quem tem hábitos de fruição cultural não costuma ter frequências de apenas uma vez ao ano, percebemos que o número de pessoas sem qualquer contacto com as manifestações e instituições culturais é avassalador. Ou seja, a esmagadora maioria de nós não tem acesso à cultura.

Este mapa do deserto da nossa vida cultural colectiva marca duas exclusões: de acesso e de voz. Porque o imenso território da não fruição é também o território sem visibilidade, ignorado. Mesmo quando um cidadão de um dos pontos deste imenso território silencioso se desloca para lá das suas fronteiras para ir, por exemplo, a um museu, o sítio onde vive continua excluído; nesse local nada se cria para quem está, nada se projecta para fora. A partir desse local não se constrói nem se lê o global. O que as estatísticas relativas à fruição cultural nos dizem é também isto: a quase totalidade do nosso território está anulada.

Os exemplos de abandono multiplicam-se e revestem várias formas; da ruína à construção. Aqui ficam alguns:

Em muitas autarquias o investimento em cultura passa pela construção de edifícios – por obras públicas - que são abandonadas depois de inauguradas; multiplicam-se os teatros sem programação e as bibliotecas sem capacidade de aquisição de obras.

Em Marco de Canavezes foram construídos um restaurante e um centro de interpretação exemplares para acolher os visitantes de uma estação arqueológica. Estão encerrados; nunca chegaram sequer a funcionar.

Em Évora a autarquia e o Instituto do Turismo decidiram fechar o Museu de Artesanato para albergar no seu espaço a colecção de objectos de design de um coleccionador privado, sem nunca ouvir a população.

Em São Pedro do Sul, em que parte das freguesias não tem ainda saneamento, um castro romanizado abandonado mostra vestígios de saneamento da época romana; quem lá mora não faz sequer ideia que ali está um dos maiores castros da Península Ibérica. E os exemplos de abandono de património pelo país repetem-se. Em todos a dupla perda: do património propriamente dito e da oportunidade de conhecimento que proporciona.

O Bloco de Esquerda tem vindo a fazer propostas que respondam ao imperativo da democracia cultural: acesso à criação e à fruição em todo o território, igualdade de oportunidades para todos e todas. Uma das propostas do BE que irá ser debatida na Assembleia da República na sessão legislativa que agora começa é a criação da Rede de Teatros e Cine-Teatros Portugueses. Com este projecto-lei pretendemos dotar todo o território de equipamentos vocacionados para a criação artística, com capacidade de actuar a prazo e com a obrigação de trabalhar com as comunidades onde se inserem, mediante um processo de certificação de equipamentos já construídos e da criação de mecanismos de co-financiamento autarquia/Ministério da Cultura.

A nossa acção tem também acompanhado o (não) funcionamento de outras duas redes estruturantes: bibliotecas e museus. E em articulação com os activismos locais e sectoriais temos acompanhado a situação do património, do financiamento às artes, da difusão cultural. E este é um caminho a aprofundar.

Um dos maiores de desafios que se coloca à esquerda é combater a dupla desigualdade de acesso à cultura de populações e territórios. E este é um desafio essencial porque é exigência de democracia e simultaneamente necessidade estratégica de qualquer força política que se quer verdadeiramente alternativa. A exclusão cultural significa a televisão como absoluto, ou seja, a completa vulnerabilidade ao discurso dominante. O acesso à cultura é condição de alargamento da base social de apoio às políticas de esquerda, é condição de mudança. Há que transformar o deserto em terra fértil.


introdução (escrita a posteriori) ao debate com o mesmo título no Socialismo 2010

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