O João desafiou-me para entrar em duas cadeias de blogs; uma de que ele fez parte - filmes - e outra que lançou - professores. Eu, incapaz de fazer "tops" ou sequer de perceber como é que alguém é capaz de escolher o mesmo "livro favorito" em duas ocasiões diferentes, fui decidindo por omissão deixar cair as cadeias. Na verdade, mesmo que conseguisse responder, não conseguia perceber a quem podia lançar o desafio. E não há cadeias sem passagem de testemunho.
Uma coincidência que, para mim, "caçadora de simetrias", como o adúltero que fomos roubar ao Millás, tem significados que não consigo explicar, mas que o meu irmão talvez perceba, reabilitou na minha memória o desafio da cadeia sobre professores. Na mesma semana em que o desafio foi renovado, percebi que a Ana promete voltar ao seu aquarela e que a Susana criou o umbilicalidades. É a elas que passo o desafio.
Agora só falta dar-lhe resposta. E aqui vai:
D. Aurora
A minha professora da escola primária em Aveiro. Ou seja, das semanas (meses?) da segunda e terceira classe que antecederam as partidas para Cabo Verde e de toda a quarta classe. A D. Aurora tinha tudo para que eu não gostasse dela. Distribuía quotidianamente palmatoadas de régua grossa de madeira, especialmente a quem não tinha ar de boas famílias (aparentemente eu tinha), atribuía todos os meus erros à "escola dos pretos" e mandava trabalhos para casa que incluíam ditados e nunca demoravam menos de duas horas a fazer.
A D. Aurora adorava ser professora e foi obrigada a reformar-se por ter atingido a idade máxima (setenta e ?). A minha turma foi a última a que deu aulas. E eu, sem que ninguém me dissesse para o fazer, ia visitá-la. Entre os 10 e os 15 anos, nas férias da Páscoa, lá ia eu comer uns biscoitos a casa da D. Aurora com um ramo de flores na mão. Aos 15 anos deixei de a ir visitar. Também deixei as aulas de piano. Nada teve que ver com a D. Aurora. Só com os 15 anos. Da D. Aurora nunca mais soube nada.
Albertina Santos
Num encontro em que se discutiu cultura, arte e internet, falou-se muito da mudança de paradigma na forma de absorver informação. O conhecimento por janelas que se sucedem em cascata substituiu o conhecimento linear. Um dos problemas dos sistemas de ensino seria precisamente o desfasamento entre professores que ensinam linearmente e alunos que aprendem por hyperlinks. Ora, a Albertina Santos, minha professora de história de liceu, sempre ensinou em hyperlink. Acima de tudo, sempre formou inteligência.
Rosa Maria Prata
Um dia disse-me que eu devia concorrer a um concurso literário. Tirando esse dia, e uns brevíssimos e discretos parabéns nos cinco anos em que ganhei o concurso, nunca me elogiou. Ensinou-me português e exigência. Comecei aos doze anos a aprender que a escrita é um processo constante de reformulação e que a procura é determinante. Quando em 2004 me vi, em Parma, na cave de uma associação de solidariedade para com os imigrantes, a tentar perceber que cidade era aquela por onde errávamos, no meio de estudos sociológicos, desenhos infantis e documentários, senti-me de volta ao arquivo de Aveiro, no meio dos mapas da ria. E pensei na Rosa Maria Prata.
Paulo Lisboa
Não foi o meu primeiro professor de teatro, mas é como se fosse. Foi o primeiro professor do curso de iniciação do CITAC. Fundou connosco o Visões Úteis. E depois deixou-nos para que pudéssemos crescer sem a sua sombra. Tragicamente abandonou-nos pouco depois. Dez anos passados, ainda não sou capaz de dizer/escrever muito mais.
João Veloso
Os meus professores de mestrado são todos muito bons. A bem da verdade, devo dizer que, depois da passagem pelo sistema feudal, com as suas palestras para grandes auditórios gelados e sem condições acústicas, e da experiência do ensino à distância, os professores de mestrado foram, efectivamente, os meus primeiros professores universitários. Mas tenho a certeza que não é por falta de termo de comparação que digo que são muito bons. São objectivamente bons. Cientifica, etica e pedagogicamente.
O João Veloso fez um pequeno milagre: eu gosto, e até percebo um bocadinho, de fonologia. Eu, que tinha tanta certeza de que a fonologia seria o pesadelo. E, porque a vida não é feita de gavetas, fez uma intervenção em que mostrou uma compreensão de muitos dos nossos porquês, quando aceitou o convite para falar sobre um dos nossos espectáculos. Esperando que me perdoe, cito este excerto:
"Vivemos, hoje, num mundo separado em castas incomunicantes, como defendi.
Esta separação não é só simbólica, económica, social ou funcional. No ponto a que chegámos no caminho da desigualdade e do fosso entre desiguais, a separação é hoje, mais do que nunca, uma separação física.
Uma metáfora lúcida desta compartimentação é o condomínio fechado – o locus de uma perfeição artificial, murado, guardado e vigiado por empresas de segurança privada que dão aos seus habitantes a ilusão de poderem continuar a viver sobre os escombros da miséria dos outros, assobiando para o ar como se a responsabilidade dessa bomba-relógio que é o afastamento galopante entre uns e outros não coubesse a todos, como se os miseráveis fossem, mais do que indesejáveis, os únicos culpados dos antros para que são remetido.
O condomínio fechado – o daqueles que “não andam de autocarro”, como diria o Lopes, o dos que acham, afinal, que “sozinho também se está bem” (não só maritalmente mas, estendendo as palavras do Camelo da peça, socialmente também) – é o Muro de Berlim das nossas cidades. É a fronteira que diz onde começa e onde acaba o território dos que nunca se cruzam, dos que defendem a fatalidade da divisão do mundo entre ricos (ilusoriamente ricos) e pobres (definitivamente pobres), entre fortes e fracos, entre sucedidos e falhados.
De um lado do muro, temos aqueles a quem tudo de mal pode acontecer. Trabalham, obedecem, sujeitam-se, demitem-se de pensar e de participar no bem comum, aceitam as migalhas que vêm de cima, prescindem de uma vida própria para se porem ao serviço de quem compra a sua existência a troco de um contrato onde se pode escrever que a um subordinado não é devido respeito pessoal (vd. a conversa de Henriques e Souselas a propósito do “miúdo do Marketing” que vai ser despedido). São, na peça, os que andam de autocarro. São, neste mundo e na nossa cidade, os que vivem nos bairros sociais, os que são levados a pensar que um contrato de trabalho ou férias pagas não são um direito, são um privilégio do passado, são os que todos os dias ouvem o discurso de que se não saem da cepa torta é porque a culpa é deles, que o mundo é assim mesmo e não há nada a fazer.
Do outro lado, temos os que decidem sobre o futuro de todos. São, neste mundo e na nossa cidade, os que vivem nos condomínios fechados, os que não receiam o “reservado o direito de admissão”, os que entram nos centros comerciais sob o olhar amável dos securitas, os que se retiraram já da escola pública, do sistema nacional de saúde, da segurança social, que entregaram o seu futuro à banca privada e aos fundos de investimento, seguros de que nada de errado lhes acontecerá e que a coexistência do fausto com a miséria é desejável, é segura e é sustentável."
Estes encontros fazem toda a diferença.
Uma coincidência que, para mim, "caçadora de simetrias", como o adúltero que fomos roubar ao Millás, tem significados que não consigo explicar, mas que o meu irmão talvez perceba, reabilitou na minha memória o desafio da cadeia sobre professores. Na mesma semana em que o desafio foi renovado, percebi que a Ana promete voltar ao seu aquarela e que a Susana criou o umbilicalidades. É a elas que passo o desafio.
Agora só falta dar-lhe resposta. E aqui vai:
D. Aurora
A minha professora da escola primária em Aveiro. Ou seja, das semanas (meses?) da segunda e terceira classe que antecederam as partidas para Cabo Verde e de toda a quarta classe. A D. Aurora tinha tudo para que eu não gostasse dela. Distribuía quotidianamente palmatoadas de régua grossa de madeira, especialmente a quem não tinha ar de boas famílias (aparentemente eu tinha), atribuía todos os meus erros à "escola dos pretos" e mandava trabalhos para casa que incluíam ditados e nunca demoravam menos de duas horas a fazer.
A D. Aurora adorava ser professora e foi obrigada a reformar-se por ter atingido a idade máxima (setenta e ?). A minha turma foi a última a que deu aulas. E eu, sem que ninguém me dissesse para o fazer, ia visitá-la. Entre os 10 e os 15 anos, nas férias da Páscoa, lá ia eu comer uns biscoitos a casa da D. Aurora com um ramo de flores na mão. Aos 15 anos deixei de a ir visitar. Também deixei as aulas de piano. Nada teve que ver com a D. Aurora. Só com os 15 anos. Da D. Aurora nunca mais soube nada.
Albertina Santos
Num encontro em que se discutiu cultura, arte e internet, falou-se muito da mudança de paradigma na forma de absorver informação. O conhecimento por janelas que se sucedem em cascata substituiu o conhecimento linear. Um dos problemas dos sistemas de ensino seria precisamente o desfasamento entre professores que ensinam linearmente e alunos que aprendem por hyperlinks. Ora, a Albertina Santos, minha professora de história de liceu, sempre ensinou em hyperlink. Acima de tudo, sempre formou inteligência.
Rosa Maria Prata
Um dia disse-me que eu devia concorrer a um concurso literário. Tirando esse dia, e uns brevíssimos e discretos parabéns nos cinco anos em que ganhei o concurso, nunca me elogiou. Ensinou-me português e exigência. Comecei aos doze anos a aprender que a escrita é um processo constante de reformulação e que a procura é determinante. Quando em 2004 me vi, em Parma, na cave de uma associação de solidariedade para com os imigrantes, a tentar perceber que cidade era aquela por onde errávamos, no meio de estudos sociológicos, desenhos infantis e documentários, senti-me de volta ao arquivo de Aveiro, no meio dos mapas da ria. E pensei na Rosa Maria Prata.
Paulo Lisboa
Não foi o meu primeiro professor de teatro, mas é como se fosse. Foi o primeiro professor do curso de iniciação do CITAC. Fundou connosco o Visões Úteis. E depois deixou-nos para que pudéssemos crescer sem a sua sombra. Tragicamente abandonou-nos pouco depois. Dez anos passados, ainda não sou capaz de dizer/escrever muito mais.
João Veloso
Os meus professores de mestrado são todos muito bons. A bem da verdade, devo dizer que, depois da passagem pelo sistema feudal, com as suas palestras para grandes auditórios gelados e sem condições acústicas, e da experiência do ensino à distância, os professores de mestrado foram, efectivamente, os meus primeiros professores universitários. Mas tenho a certeza que não é por falta de termo de comparação que digo que são muito bons. São objectivamente bons. Cientifica, etica e pedagogicamente.
O João Veloso fez um pequeno milagre: eu gosto, e até percebo um bocadinho, de fonologia. Eu, que tinha tanta certeza de que a fonologia seria o pesadelo. E, porque a vida não é feita de gavetas, fez uma intervenção em que mostrou uma compreensão de muitos dos nossos porquês, quando aceitou o convite para falar sobre um dos nossos espectáculos. Esperando que me perdoe, cito este excerto:
"Vivemos, hoje, num mundo separado em castas incomunicantes, como defendi.
Esta separação não é só simbólica, económica, social ou funcional. No ponto a que chegámos no caminho da desigualdade e do fosso entre desiguais, a separação é hoje, mais do que nunca, uma separação física.
Uma metáfora lúcida desta compartimentação é o condomínio fechado – o locus de uma perfeição artificial, murado, guardado e vigiado por empresas de segurança privada que dão aos seus habitantes a ilusão de poderem continuar a viver sobre os escombros da miséria dos outros, assobiando para o ar como se a responsabilidade dessa bomba-relógio que é o afastamento galopante entre uns e outros não coubesse a todos, como se os miseráveis fossem, mais do que indesejáveis, os únicos culpados dos antros para que são remetido.
O condomínio fechado – o daqueles que “não andam de autocarro”, como diria o Lopes, o dos que acham, afinal, que “sozinho também se está bem” (não só maritalmente mas, estendendo as palavras do Camelo da peça, socialmente também) – é o Muro de Berlim das nossas cidades. É a fronteira que diz onde começa e onde acaba o território dos que nunca se cruzam, dos que defendem a fatalidade da divisão do mundo entre ricos (ilusoriamente ricos) e pobres (definitivamente pobres), entre fortes e fracos, entre sucedidos e falhados.
De um lado do muro, temos aqueles a quem tudo de mal pode acontecer. Trabalham, obedecem, sujeitam-se, demitem-se de pensar e de participar no bem comum, aceitam as migalhas que vêm de cima, prescindem de uma vida própria para se porem ao serviço de quem compra a sua existência a troco de um contrato onde se pode escrever que a um subordinado não é devido respeito pessoal (vd. a conversa de Henriques e Souselas a propósito do “miúdo do Marketing” que vai ser despedido). São, na peça, os que andam de autocarro. São, neste mundo e na nossa cidade, os que vivem nos bairros sociais, os que são levados a pensar que um contrato de trabalho ou férias pagas não são um direito, são um privilégio do passado, são os que todos os dias ouvem o discurso de que se não saem da cepa torta é porque a culpa é deles, que o mundo é assim mesmo e não há nada a fazer.
Do outro lado, temos os que decidem sobre o futuro de todos. São, neste mundo e na nossa cidade, os que vivem nos condomínios fechados, os que não receiam o “reservado o direito de admissão”, os que entram nos centros comerciais sob o olhar amável dos securitas, os que se retiraram já da escola pública, do sistema nacional de saúde, da segurança social, que entregaram o seu futuro à banca privada e aos fundos de investimento, seguros de que nada de errado lhes acontecerá e que a coexistência do fausto com a miséria é desejável, é segura e é sustentável."
Estes encontros fazem toda a diferença.
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