28 agosto 2008

Socialismo 2008 - II


A realidade não é uniforme e as generalizações não são aconselháveis. Ainda assim, arrisco:

1. De uma maneira geral a programação cultural é muito compartimentada. Criação contemporânea e património, erudito e popular, amador e profissional raramente se cruzam num mesmo palco, num mesmo espaço. Impera a ideia de público-alvo sem mobilidade. E a ideia de identidade do espaço ou da programação como um bem em si mesmo e que se define pelo monocromatismo. Espartilhados os espaços servem grupos muito específicos e poucas são as pessoas que os sentem como seus - condição primeira para os quererem ocupar como público.
Acredito sinceramente que as experiências bem sucedidas de criação e formação de público local (os habitantes da localidade onde está o equipamento têm de ser o primeiro público-alvo da sua programação) se devem a uma oferta muito diversificada que dá a todos razões para se sentirem donos do espaço: porque foi lá que se viu o espectáculo sobre a sua rua e aquele do actor conhecido, porque no mesmo mês se pode ver dança contemporânea e assistir à comemoração do centenário da banda filarmónica da terra, porque na sala ao lado da exposição com o quadro da prima estava a acontecer um concerto de música electrónica,...

2. A fruição da arte pressupõe a partilha de determinados códigos. Códigos culturais, uns mais universais do que outros, e que se podem aprender. Quantos mais códigos aprendemos, maior é a diversidade artística de que podemos usufruir. Mas para aprender um código é preciso algum ponto de apoio. Pessoas com origens culturais diversas precisam de pontos de apoio diversos.
O monocromatismo das programações não permite a partilha de códigos. E assim, independentemente do universalismo da criação, temos espectáculos, exposições, instalações, ou o que for, só para crianças, só para adultos, só para adolescentes, só para idosos, só para nascidos num canto da Europa, só para nascidos num outro canto, só para os que têm ligações a um pedaço de um outro continente, só para quem tem suspensórios às riscas, só para quem usa chapéu com abas...

3. A programação cultural não é criação artística. A programação é uma ponte entre a criação e o público. É, assim, um serviço público. E deste serviço público se espera que proporcione às pessoas que serve o contacto com a criação artística do seu tempo e do que a precedeu e com a criação artística local e do mundo na sua diversidade (o local, tal com o o mundo, é diverso). E que promova os mecanismos necessários para que o público que serve tenha as ferramentas - os códigos - para usufruir da oferta. Este é um serviço que ao cumprir-se serve o interesse público de construir a cada dia a identidade cultural local. É a partir do local que se constrói o global (pelo menos o global que tem que ver com a vida das pessoas - que é diverso e gosta de o ser).
Infelizmente muitas vezes confunde-se o serviço público de programar com lógicas internas de sobrevivência de instituições ou competição de visibilidade entre equipamentos ou cidades. E depois acontecem coisas terríveis: serviços educativos que são meros angariadores de público escolar, equipamentos municipais que os munícipes não conhecem, programadores que desconhecem o que os rodeia e inventam ciclos temáticos e outros que tais que impõem, com a chantagem dos meios, aos criadores, desvirtualizando assim completamente o serviço público que é suposto servirem.

(Sobre os programadores, a adaptação às artes do palco da figura do comissário das artes visuais, devo dizer que não estou convencida da sua utilidade. Acredito que a programação artística deve ser feita por artistas. Pelo menos nas artes do palco, o trabalho pluridisciplinar e em equipa dá aos artistas armas mais do que suficientes para cumprir a tarefa. É claro que nem todos os artistas serão capazes de programar. Como nem todos os professores serão capazes de gerir escolas. Ou médicos os hospitais. Mas, podendo e devendo trabalhar em equipas com valências várias, são estes, cada um na sua área, os melhores garantes de que o secundário não subalterniza o essencial.)

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